27 de jan. de 2006

Sobre Bonner e Homer

Temos que admitir, o ser humano é um contínuo paradoxo em trânsito. Se, enquanto espécie, oscilamos entre a genialidade e a bestialidade, o nobre e o vil, o santo e o profano; individualmente podemos oscilar entre gradações de amplitude menor, mas ainda, sob certo aspecto, opostas. Podemos ser cálidos ou explosivos, frios ou passionais, amorosos ou indiferentes, alternando disposições que, com grande freqüência, sequer conhecemos ou compreendemos. Desejamos sem saber porquê, queremos ora uma coisa, ora outra. É provável, porém, que a nossa maior contradição esteja em algo mais tangível, a saber, no incrível distanciamento que nutrimos entre o que somos e o que pensamos ser.
Em crônica publicada recentemente na revista Carta Capital, o sociólogo Laurindo Lalo Leal Filho narra a pitoresca visita de um grupo de professores à Rede Globo e, em especial, a oportunidade que estes tiveram de participar de uma reunião de pauta do Jornal Nacional. Muitos são os quitudes apresentados, porém vamos nos ater ao prato principal: a designação dada por William Bonner, editor-chefe do Jornal Nacional, para o seu telespectador padrão (entenda-se consumidor), Homer Simpson. Não pode ser chamada de leviana a terminologia empregada por este profissional que é uma referência no telejornalismo brasileiro (por mais que se torça o nariz, acreditem, ele é uma referência bastante significativa para entendermos muitas coisas em nosso país). Afinal de contas, o perfil que definiu o Homer brasileiro surgiu através de uma pesquisa, é uma informação "científica". Imagino esta como uma eventual resposta do renomado jornalista a uma inquirição direta sobre o assunto, embora esteja inclinado a acreditar que o mesmo possua uma noção bastante vaga do que venha a ser ciência.
Poucos de nós sabem ao certo o grau de influência que o Jornal Nacional exerce na formação da opinião do povo brasileiro, mesmo assim intuímos que esta seja gigantesca e é isto que nos deixa apreensivos e, até certo ponto, constrangidos quando tomamos conhecimento de algo do gênero daquilo que foi relatado. Alguns poderão, inclusive, sentirem-se tomados de indignação (a indignação eu dispenso, porque sei que ela faz mal ao estômago). Todos estes sentimentos são os elementos que dão a tônica do contato inicial, aquele que imediatamente sucede à percepção e constitui-se na primeira tentativa de interpretação do discurso exposto. Na seqüência deste movimento deveria sobrevir uma calma e lenta reflexão acerca do acontecido, de modo a conseguir discernir os elementos mais esquivos e obscuros, certamente encobertos pela nuvem do que aparece em primeiro plano. Infelizmente não é habitual que cheguemos a este estágio, fosse assim, não seríamos todos chamados de Homer Simpson, por mais simpático que nos pareça tal personagem.
Há fatos que, se forem minuciosamente analisados, podem mostrar-se como indícios significativos para facultar uma maior compreensão da realidade em que estamos inseridos (mesmo que esta realidade seja uma invenção mal-sucedida do ser humano) e penso que o fato em questão é um destes. Muitas são as perspectivas de análise que ele permite abrir, entretanto escolherei apenas uma, talvez a mais singela e menos importante: a percepção distorcida que temos em relação a nós mesmos.
À primeira vista, pode parecer que não haja uma conexão clara entre o fato citado e o tema escolhido. Existindo a conexão, procuremo-la, caso contrário, inventemo-la.
Se reunirmos 3 pessoas, na calada da noite, em uma sala parcamente iluminada, não seria incomum elas acharem por bem tratar como assunto a figura de um desafeto mútuo, aliás, como sempre digo, nada une mais as pessoas que um inimigo em comum. Assim como não seria algo espetacular se, referindo-se a esta pessoa, utilizassem adjetivos como conspirador, caluniador e maledicente. Qualquer um, com um mínimo de discernimento, pode perceber a ironia que é aplicar a outrem adjetivos que poderiam muito bem qualificar a atitude de quem adjetiva. Tanto quanto irônica, esta prática é incomodamente comum.
Pensemos que o ato de atribuir adjetivos de conotação negativa a outras pessoas, principalmente se estes poderiam ser aplicados igualmente a quem os aplica, demonstra uma atitude que envolve uma visão que se prolonga de si para fora, obscurecendo a visão de si para si. Não podemos ignorar que, assim como a percepção que temos do mundo, ou seja, das coisas externas a nós, é passível de equívocos, o mesmo acontece com a nossa percepção interna (percepção de si). Esta, freqüentemente, mistura-se com imagens que construímos a nosso respeito, sem que estas necessariamente possuam uma contrapartida real.
Quando julgamos depreciativamente alguém, trazemos implícita a noção de que estamos em condição de julgar. Questionar a condição de julgar, por si só, é um ato que inibe o julgamento conclusivo. Ao julgarmos outra pessoa, conscientemente ou não, efetuamos um movimento onde, ou simplesmente ignoramos a nós mesmos, excluindo-nos da equação, ou a nossa figura aparece como um referencial situado em posição de valor suficientemente privilegiado para submeter o que a circunda ao seu julgamento. A segunda opção parece ser a mais comum e, possivelmente, aquela presente no discernimento do Sr. Bonner.
O uso pejorativo do termo “Homer” para designar grande parte da população brasileira, como referência a sua eventual incapacidade intelectual generalizada, no meu entendimento, não é tão interessante como indicativo claro do preconceito que lhe acompanha. Creio que aqui se destaca o fato de que quem faz este julgamento pressupõe estar em uma condição privilegiada para julgar a capacidade dos outros.
Se eu fosse tomado pelo mesmo ímpeto arrogante de acreditar-me acima daquilo que designaríamos como inteligência mediana, poderia dizer que o Jornal Nacional é um telejornal de péssima qualidade e que, ao contrário do que se pensa, ele é assim não porque esta baixa qualidade seja intencional e tenha em vista atender à incapacidade intelectual de seus telespectadores, mas porque aqueles que são responsáveis por ele fazem o que sabem fazer, ou seja, um trabalho de péssima qualidade. Entretanto, evito fazer tal comentário, pois proceder desta maneira seria seguir o deplorável exemplo do Sr. Bonner, tão carente de elegância, inteligência e cultura.

Podendo escolher livremente, confesso que me agrada mais fazer parte da legião dos “Homers” ignorantes do que do restrito grupo dos “Bonners” esclarecidos. Pois a aparente ignorância daqueles, nestes é substituída por um aparente esclarecimento e qual a definição mais clara de ignorância que não saber que não sabe.