9 de jul. de 2007

O gato traiçoeiro

Dizem por aí que não há dúvida, esta é uma história real. Não me cabe dizer se ela é real ou não, somente contá-la.
Vivia uma moça quase que sozinha no seu apartamento. Digo quase que sozinha porque dividia o espaço com um grande gato cinzento. Não é por desconsideração ao gato que digo quase sozinha, é que se tratava de um bichano soturno e quieto. Toda vez que a moça tentava o diálogo, respondia com um olhar indiferente ou um leve ronronar. O mais interessante não era o silêncio, era a impressão de cálculo, de intenção, o que nutria na moça a esperança de ser compreendida. Enfim, vivia uma moça quase que sozinha no seu apartamento com um grande gato cinzento.
Ela não era a mais bonita das moças, assim como não era a mais feia. Acho sempre arriscado falar de beleza ou feiúra, visto que as pessoas não possuem um acordo fixo acerca deste assunto. Pelo que dizem e pelo que a minha imaginação aceita, estava mais para bonita do que para feia.
Como manda a coerência, para alguém que vivia “quase” sozinha, apesar de não ser feia, a moça não tinha namorado ou noivo e, até onde se sabia, não tinha qualquer interessado. Não é recomendável a um narrador de boa índole cometer indiscrições, entretanto a discrição, muitas vezes, é um luxo que rouba a quem conta uma história o prazer da narrativa, impedindo a exposição daqueles pequenos detalhes que são o essencial de qualquer relato. Portanto não julgo indiscrição dizer que a moça tinha alguns admiradores secretos, mesmo que pensasse não merecer a atenção de qualquer homem.
Antes que me esqueça, chamarei de Amanda a até agora protagonista (e digo até agora porque é possível que não seja protagonista até o final da história, considerando a dificuldade que sempre possuiu em ser protagonista até de sua própria vida), porque fica mais fácil usar um nome do que lhe chamar de “moça”, “ela” ou “a personagem” o tempo todo. Amanda parece-me um nome bonito e elegante, com a vantagem de preservar a identidade real da jovem solitária, poupando-lhe qualquer constrangimento.
Creio ter tomado demasiado tempo do leitor falando de Amanda. Os mais rigorosos, com certeza, entenderão que poucos foram os indícios fornecidos para que a conheçamos suficientemente bem, porém dizem que não há muita coisa a mais que possa ser acrescentada, a não ser que a moça, Amanda se preferirem, passava o dia a trabalhar e a noite a estudar, sendo que o seu apartamento era mais propriedade do grande gato cinzento do que sua.
A quem interessar possa, cabe dizer que a atenção que concedemos à Amanda em momento algum perturbou o “gato cinzento”. É fato conhecido que os gatos são criaturas furtivas, sutis, silenciosas, ... Este gato, em particular, talvez fosse mais ardiloso que os outros e o fato de nossa atenção estar centrada na doce e meiga Amanda (sei que não falei isto antes, mas a Amanda era uma moça doce e meiga), propiciava uma liberdade de movimentos que muito lhe agradava.
A real natureza deste gato singular talvez passasse desapercebida a todos nós, porque mesmo Amanda, que lhe tinha como melhor amigo, desconhecia-o completamente. O que sabemos sobre ele e contaremos a seguir só foi possível descobrir porque olhos muito atentos e mais ardilosos que o felino possibilitaram trazer a lume estes fatos. Os mais ciosos da veracidade do relato tentarão atestar a fidedignidade da fonte, indagando acerca de que olhos são estes que, mais furtivos e dissimulados que o mais furtivo e dissimulado dos gatos, conseguiram captar o que alguém jamais viu? Não tenho poder para inibir qualquer investigação, só posso dizer que devo preservar a fonte de qualquer possível retaliação, mantendo-a no anonimato.
Não há uma história uniforme, bem começada, bem desenvolvida e bem acabada. Sabemos de alguns fatos esparsos e é a estes que me atenho. Certa vez Amanda, ao entrar na sala de estar de seu apartamento, não percebeu que uma das bordas do tapete estava levantada e tropeçou, caindo próxima a uma mesa de centro com cantos muito agressivos. Do acidente restou-lhe algumas feridas superficiais no joelho. Naquela semana Amanda dividiu-se entre o azar que teve ao tropeçar e a sorte de não ter acontecido um mal maior. Ela nunca soube, mas foi o gato que, sutilmente, levantou a borda do tapete para que ela tropeçasse. Não era sua intenção, pelo menos naquele momento, provocar um acidente grave, todavia deve ser dito que o gato adorava divertir-se às custas da pobre moça.
Às vezes desligava o despertador para que Amanda chegasse atrasada ao trabalho. Às vezes entupia o vaso sanitário e as pias para ver o chão encharcado, mesmo detestando água. Às vezes tirava dinheiro de sua carteira e escondia. Às vezes deixava a porta da geladeira aberta. Quando ela estava ao telefone, desligava e ligava novamente o cabo para interromper a ligação. Quando ela estava tomando banho, desligava o disjuntor de energia para que a água ficasse fria. Quando ela estava passando roupa e se distraía, lá estava o gato aumentando a temperatura e torcendo para que ela queimasse algo na sua frente. Escondia os seus sapatos e roupas. Sumia com a correspondência. Bebia todo o leite e comia toda a carne e chocolate que houvesse (o gato adorava chocolate, coisa impressionante, pois há especialistas que garantem que os gatos não sentem o sabor doce).
O mais surpreendente nisto tudo era o fato de que, seja por estupidez da moça ou maestria do gato, ela jamais desconfiou. Quando acontecia algum acidente desagradável, olhava para o gato e ele emitia um baixo e quase imperceptível miado inocente, acompanhado de um olhar solidário. Amanda sempre se julgou uma pessoa de má sorte, para quem tudo dava errado. A presença do gato gerava algum conforto para sua solidão, pois via nele alguém de confiança, diante de um mundo de insegurança, traições e vilezas. Talvez a questão não fosse ter conhecimento das traquinices do gato, pois como Amanda poderia concebê-las em seu universo, onde o silêncio do animal de estimação era um claro sinal de cumplicidade? Como poderia imaginar que a sua passividade não era tão passiva assim e que, ao contrário, o grande gato cinzento estava empenhado em tornar a sua vida um inferno?
As razões do gato são desconhecidas. Não é possível afirmar se ele é naturalmente mau. Se tem uma antipatia pela moça, daquele tipo que alguns parentes têm entre si e que nada parece demover. Se tudo era pura galhofa ou, o mais provável, se era só tédio. Talvez o escape do tédio para Amanda fosse a autopiedade e o escape do gato fosse dar motivos para a autopiedade de Amanda, quem sabe.
Como acaba a história? Até onde sei, não acaba. Parece que ainda hoje Amanda continua sofrendo nas mãos, ou melhor nas patas, de seu gato. Deve ser reconhecido que o bichano manteve o seu padrão de qualidade com criatividade e dedicação, buscando sempre novas e eficientes maneiras de cumprir as suas tarefas. O que fica de lição disto tudo é apenas que devemos ficar atentos. Se entrarmos na casa de uma moça com uma expressão desafortunada, que não é feia e que mora apenas com um grande gato cinzento, não devemos tirar os olhos do gato, em momento algum.

15 de jun. de 2007

Sucesso

O português José Saramago foi o primeiro escritor de língua portuguesa a receber um premio Nobel de Literatura, em 1998. Segundo ele mesmo conta, no momento em que foi anunciado seu nome pela comissão do prêmio estava no aeroporto de Lisboa. Procurou um telefone público para falar com o seu editor e saber qual havia sido o resultado. Ao efetuar a ligação, ouviu de uma secretária o pedido para aguardar na linha. Neste mesmo instante seu nome foi chamado no sistema de som do aeroporto, havia uma chamada telefônica. Uma moça do balcão da Lufthansa estava com o fone na mão, esperando-o. A jovem não conseguiu conter a emoção e deixou escapar: ele fora agraciado. Ao saber da notícia, Saramago teria dito algo como "Prêmio de quê?".
O escritor explica que não considerava pouco o Prêmio Nobel, não era um gesto de soberba ou de desprezo. Era aquela lucidez incômoda que, às vezes, nos assalta. Tudo é tão pouco, justifica. Que representa o nosso sucesso, que representa todo o reconhecimento e poder dos homens, que representa um prêmio Nobel diante das estrelas, dos mundos, da vida, do universo...
Tenho para mim que a história de cada pessoa é singular, portanto é insólito pensar que uma vida possa ser mais singular que outra. Por outro lado, há histórias onde a vida parece clamar por atitudes, por aberturas, por espaço para se manifestar. Muitas vezes, as pessoas se esforçam para calar este chamado, pois os chamados da vida, quase sempre, incitam ao novo, ao incerto, ao risco. O mundo dos homens é rico em preceitos e proibições. O tabu dos tempos atuais é o fracasso, o erro e a fraqueza. Assim, é melhor calar vozes, mesmo que internas, que possam nos induzir ao "ridículo". Há pessoas que, ignorantes que são, ignoram os avisos daqueles que tem o "bom senso" e, ao invés de seguir por trilhas cansadas de tão pisadas, resolvem abrir seus próprios caminhos. É possível que José Saramago seja uma destas pessoas.
De origem humilde, o escritor, antes de ser escritor, aprendeu na escola técnica o ofício de serralheiro mecânico, vindo a trabalhar numa oficina de automóveis. Teve vários empregos (serralheiro, desenhista, funcionário da saúde e da previdência social) antes de publicar o seu primeiro romance, Terra do Pecado, aos 25 anos. Não sei se pode ser dito que este tenha sido o início de sua carreira literária, pois se passaram quase vinte anos até que viesse a publicar novamente. Neste período, entre outras funções, na imprensa, foi jornalista e crítico literário. Entretanto, é somente em 1975 (quando tinha 53 anos) que decide dedicar-se somente à escrita, após ser demitido do cargo de diretor-adjunto do jornal Diário de Notícias, passando a manter-se, durante algum tempo, com o trabalho de tradutor. Os críticos literários consideram que a produção literária de Saramago acentua-se visivelmente após os seus 55 anos de idade.
Os grandes escritores dominam a arte de escrever com profundidade. Escrever com profundidade não significa escrever um texto com ambigüidades que, aos incautos, parecem expressão de grande sabedoria, mas um texto com significados em camadas, permitindo que o leitor penetre-o muitas vezes e, em cada uma delas, possa encontrar novos conteúdos, dando vida à aparente aridez da letra morta que é posta sobre o papel. Saramago começa o seu discurso da entrega do prêmio com a seguinte frase: "O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever." Esta frase fazia referência ao seu avô, um camponês com o qual conviveu em sua infância e adolescência. Esta frase pode possuir uma série de significados, mas o que, ao meu ver, primeiramente emite é um alerta, um chamado à humildade.
Vivemos em um mundo de injustiças e de farsas. Pergunto-me se é por acaso que um dos maiores mestres da literatura contemporânea cita que é neto de analfabetos e fala disso não naquele sentido que nos acostumamos a ver nos filmes americanos, onde a origem humilde serve para que o personagem possa se gabar de ter atingido o sucesso, a realização do mito e do ideal do self made man. Não, o autor, o letrado, diante de uma platéia de luminares, quando os olhos do mundo estão sobre si, não presta o seu maior tributo a Virgílio, Dante, Cervantes, Goethe ou Shakespeare, presta-o a seu analfabeto avô, "o homem mais sábio que conheceu". Saramago, no mundo globalizado da pressa e do lucro, que produz doutores, intelectuais e artistas em escala industrial, resgata a dignidade de alguém tragado pelo tempo e esquecido pela sua "insignificância". Diante de tanta pompa e luxo, foi a presença onipotente da figura do camponês analfabeto que calou uma platéia para que se escutasse as lições que ensinou ao literato reconhecido.
Alguns dizem que só podemos falar da história de alguém quando ela está concluída. Considerando o pressuposto implícito a quase toda concepção histórica que é o de fatos dispostos em uma linha de tempo, tal argumento é válido. Porém, seja por licença poética ou por romantismo de alguns eruditos, a história passou a evocar, também, a multiplicidade simbólica que é própria da vida humana, contínua enquanto existente e persistente na língua, na memória e nos objetos, mesmo após a morte. E é na idéia de continuidade que, fazendo uma pausa na vida de Saramago e olhando-a em perspectiva, sabendo que esta casuística é imprópria e indigna da vida de qualquer um, pergunto: este escritor é um homem de sucesso? A obviedade da resposta inibiria que um leitor imprudente fizesse tal pergunta, mas não sei se posso inscrever o meu nome no rol dos prudentes e por isso a faço. Receber um prêmio que, por muitos, é considerado a maior dignidade que pode ser concedida a um escritor significa, à primeira vista, o coroamento de uma carreira de êxito, mas insisto: é Saramago um homem de sucesso?
Se cedo à pressão do senso comum e aceito que ele é um homem de sucesso, reconheço isto pelas suas obras. A suas principais obras vieram a lume após os seus 55 anos, então hoje posso dizer que ele possui sucesso, mas se fizesse esta análise quando ele possuía 50 anos, diria, então, que era um escritor fracassado? Qual o valor do Saramago de 30 anos?
Muitos dirão que a obra do escritor se deve ao seu gênio. Usar o termo gênio é muito cômodo, pois é como uma mágica que nos livra de ter que dar alguma explicação. Qual o valor do gênio quando o seu segundo romance não foi aceito para publicação? Qual o valor do gênio de Saramago quando foi demitido aos 53 anos? A nossa cultura considera normal pensar que uma pessoa com mais de 50 anos não tem com que contribuir, ao mesmo tempo em que não esperamos que ela produza algo de significativo para os outros e, talvez, para si mesma.
Normalmente somos tão tomados pelas convenções sociais que se torna difícil perceber quantas convenções Saramago burlou. Da origem humilde e sem formação para o reconhecimento mundial como um dos maiores mestres da escrita de nosso tempo, de uma carreira mediana e comum para o sucesso após uma idade que se considera reservada à aposentadoria. Este caminho não deixa incólume a ninguém e se concede algum poder é o de reconhecer o vazio das convenções e a certeza de que não se deve nada a elas.
Não somente com sua obra, mas com seu exemplo, José Saramago resgata a dignidade dos excluídos. Dos excluídos pela pobreza, dos excluídos pela ignorância, dos excluídos pela idade. Dos excluídos pela violência, seja a dos ricos, dos perversos ou dos indiferentes. Diante deste exemplo, pergunto-me o que seria, então, o sucesso, pois as concepções usuais estremecem quando confrontadas com um exame mais atento e com a realidade da vida. Creio que uma possível resposta poderia começar a partir dos dizeres do ilustre escritor português: "O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever".

1 de jun. de 2007

Sonho e realidade

Falamos em tom de troça da velha pergunta que se fazia às crianças: "o que você quer ser quando crescer?". O cômico, quase sempre, procede do ato de apresentar a indagação àqueles que, pelo menos à primeira vista, já não possuem mais o que crescer. O tempo passou, o corpo mudou, o amanhã é "hoje" ou, pior, já virou "ontem". Perguntar às crianças, por sua vez, significa penetrar na leveza própria do mundo infantil, permitir o vislumbrar de um horizonte que se alarga indefinidamente, como se fosse só questão de vontade fazer de todo o sonho uma realidade. Nada destoa mais deste frescor da alma do que o mundo claustrofóbico, limitado e cinzento, que é onde, em geral, vivem os adultos.
O sonho representa um vôo esperançado para frente, para um porvir melhor. Todos nós, ao longo de nossas vidas, vivemos uma infinidade de experiências e, principalmente durante a infância, muitas destas deixam marcas indeléveis em nossas histórias e personalidades. Quando crianças, idealizamos um paraíso próprio, um mundo aparte, representado por uma profissão, uma casa, uma família ou uma carreira, às vezes apenas alguns objetos. Fragmentos da imaginação depositados no caprichoso e indiferente terreno daquilo que virá a ser. Estas projeções trazem consigo a influência direta do que foi vivido e da forma como isto foi assimilado. A aspiração por uma carreira de sucesso, por exemplo, pode encontrar o seu nascedouro na busca pela compensação de uma humilhação sofrida na infância. Então, os sonhos motivadores dos nossos grandes projetos acabam por ocupar a centralidade do universo psíquico. Alguns se sentem tão acalentados por estes sonhos que os guardam ao longo de toda a vida, como o último bastião em defesa da inocência perdida, perseguindo-os obstinadamente, por vezes deformando-os e adequando-os à crueza do mundo "real", preferindo condená-los à deturpação antes que entregá-los ao abandono. Não se trata da superação da realidade passada, com a devida reelaboração das suas nuances mais perturbadoras, é a tentativa de retorno, onde se busca não somente o resgate, mas a oportunidade de reviver o momento pretérito de uma forma idealizada, sonho que, pela sua impossibilidade, é sempre condenado à frustração. Muitos de nós, quando concebemos o porvir como superação do passado ou do presente, não percebemos que, mais do que ansiar por um futuro melhor, trazemos conosco o desejo inconsciente de reviver o passado de outra forma e, realmente, muitas de nossas atitudes podem tender para isso.
O ser humano não é uma coisa, antes disso é um movimento e, na qualidade de seres indefinidamente cambiantes, somos confrontados por uma dinâmica inefável e intransigente. Podemos insistir em não querer perceber esta realidade de contínua transformação, mas não podemos interrompê-la ou evitá-la. Assim como o organismo modifica-se continuamente, também se alteram os estados psíquicos, a interioridade. Nossas mais elevadas aspirações não fogem a este processo, embora, ao mesmo tempo, se afigurem como manifestação do nosso anseio por perenidade, por estabilidade, por segurança.
Diante disso, é possível notar que o processo de amadurecimento relaciona-se justamente com o percurso que o homem realiza, em sua existência, passando por situações agradáveis ou desagradáveis, dolorosas ou prazerosas, motivadoras ou desanimadoras, e com a forma como ele concede a si mesmo maior ou menor flexibilidade para transformar as suas aspirações, ou seja, integrando as suas perspectivas com as experiências vivenciadas.
O cotidiano é o palco de confluência de todas estas vertentes, onde são confrontadas as experiências tidas ao longo da vida, as marcas por elas deixadas, os sonhos e os temores com os quais revestimos o espanto, a impotência e a inquietude diante do mundo; a inevitabilidade da mudança constante, a necessidade de contínuo amadurecimento e o persistente impulso de prosseguir existindo.
Diante do complexo meandro que é a vida, flexibilidade significa desenvolver a capacidade para abandonar certos sonhos, valores, crenças ou ideais. Não porque nos desenvolvemos em cinismo, perdendo toda a possibilidade de esperança ou magia, passando a carregar no coração uma amargura doentia em relação à vida, mas pelo reconhecimento de que algumas aspirações, quando sacadas do universo que lhes deu origem, são pequenas e vazias, representando somente o apego que temos a certos aspectos mesquinhos de nossa personalidade.

25 de mai. de 2007

As cicatrizes

Quando tinha mais ou menos 5 anos de idade, numa brincadeira boba, acabei por dar com a testa em um chão de concreto. Passados tantos anos, esperar que um fato desta natureza possa ser narrado com detalhes e, ainda, que todos estes correspondam à verdade, é uma aspiração ambiciosa demais. Fora raras exceções, as pessoas normalmente tem lembranças enevoadas e fragmentadas desta primeira fase da infância, não acontecendo diferente comigo.
Digo que me recordo do incidente, de ter sido conduzido a um pronto socorro, de ter a minha sobrancelha costurada e de não ter feito qualquer escândalo, mas afirmar com certeza que minhas recordações são lembranças autênticas, como cópias retidas dos acontecimentos passados, isto eu não posso.
Conheço algumas armadilhas que os nossos pensamentos engendram, portanto estou quase seguro que o fato aconteceu, mas não tenho tanta certeza de que ele aconteceu como eu me recordo. Quem garante que não preenchi os lapsos da memória com algumas porções de criação própria, suprimindo eventuais lacunas?
De todo o acontecido fiquei, porém, com uma forma de evidência física, uma cicatriz, um emblema que reforça, quem sabe, a convicção de que aquilo aconteceu mesmo. Tenho, então, esta cicatriz que divide a minha sobrancelha esquerda em duas e deve medir uns 4 ou 5 centímetros. Apesar de, com o passar dos anos, ter me acostumado a ela e passado a tratá-la com relativa indiferença, não há como negar que, de tempos em tempos, encontro-a no lugar de sempre e disposta a recontar a mesma história outra vez, como os velhos marinheiros que, após uma vida em alto mar, vivem "amarrados" à terra firme e vêem no ato de contar incansavelmente as mesmas histórias a única forma de reviver velhas aventuras. A minha cicatriz está lá. Quieta e eloqüente. Sutil e ameaçadora. Ausente e sempre presente.
Entendo que a nossa capacidade de atenção é de tal forma diminuta que dá conta apenas de uma ínfima parte daquilo que temos descortinado ao nosso redor, por isso não me espanta o fato de que nem sempre eu e minha cicatriz troquemos reminiscências. Se pensarmos com alguma coerência à respeito, notaremos que é bastante natural o fato de não termos um inventário atualizado de todas as nossas cicatrizes, seja daquelas que clamam o seu lugar pela evidência física de terem marcado o nosso corpo, seja daquelas que marcaram o nosso espírito e, sob certo aspecto, vivem de forma furtiva e dissimulada em nossas ações e pensamentos.
Sobre as cicatrizes do nosso corpo, que um dia foram feridas e estiveram revestidas de dor, sabemos que o fato de serem cicatrizes, quase sempre representa que não são mais uma ameaça, são sim um símbolo de algo que foi curado e é por isso que podemos usá-las como uma analogia em relação às feridas que temos e curamos em nossa interioridade.
Entendemos a palavra cura como o restabelecimento do organismo a uma condição saudável. Restabelecer é estabelecer novamente, pressupondo que houve uma condição saudável anterior que, de forma geral, é considerada como uma forma de equilíbrio. Associamos ainda, à palavra cura, o sentido de sucesso na luta contra algum mal que nos aflige. A palavra cura, em seu sentido etimológico oriundo do latim, quer dizer cuidado. Então, cura, quando associada ao contexto terapêutico, evoca o cuidado que é necessário para se recuperar a saúde. Acho interessante que, quando tratamos da sanidade, normalmente não usamos a palavra saúde, aparentemente mais apropriada, mas a palavra cura. Pergunto-me se esta prática é fruto de caprichos casuais do fluxo das línguas ou se remete a práticas bem fundamentadas, que uma análise filológica rigorosa pode apurar com precisão. Ou ainda se ela traz embutida a idéia de que, na verdade, a saúde é fruto de um contínuo e incansável processo de "cuidado", sendo que falar cura significa dizer que estamos cuidando, talvez controlando, os nossos males.
Esta última e imaginativa tese cerca os meus pensamentos quando percebo que o anseio que temos de superar os males jamais será saciado. Superar é colocar-se acima de, ultrapassar. Quando pensamos na superação, pensamos também em distanciamento e, se possível, oblívio. A idéia de superar as nossas feridas predispõe que a cicatriz já possa representar uma forma de superação, a cristalização dos males em algo inofensivo, o encapsulamento daquilo que é prejudicial em uma forma anacrônica e de fácil manipulação, a transformação daquilo que ameaça em algo o qual possamos dedicar esquecimento ou indiferença. Desta forma, o mal que é passado já não é mais mal, foi superado.
Tenho estado inclinado a acreditar que de fato não superamos os males, as feridas. Não as abandonamos definitivamente em quartos trancados pelo passado e que jamais serão abertos. Não somos os heróis cuja vitória destrói a fera e apaga a sua existência. As lembranças que trazemos das boas e más experiências podem estar dormentes em espaços recônditos de nossa memória, as suas marcas, por sua vez, parecem manifestar-se em cada pequeno gesto que fazemos. Não superamos os nossos erros, não superamos as nossas mágoas, ressentimentos, medos e traumas. A distância que queremos criar e manter é apenas ilusão, uma simulação que nos tranqüiliza e ajuda a superar a fraqueza.
Podemos pensar diferente e acreditar que somos senhores plenos na arte de escolher o que nos convém lembrar e determinar o que pode nos influenciar ou não e de que maneira. A impressão que fica, entretanto, é que a realidade difere significativamente de tal perspectiva. O esquecimento sobre certas coisas é mais fruto de um gigantesco esforço cotidiano do que algo que aconteça espontaneamente. Muitas das nossas atividades comuns, de nossos objetivos e de nossas aspirações são gestos de esquecimento, são tentativas persistentes de apagar aspectos, ângulos ou parcelas de nossa existência. Não creio ser possível concebermos a vida por uma perspectiva de reversibilidade das experiências, pois a idéia de distanciamento do que já foi traz consigo esta ambição implícita, de superação como decreto de inexistência.
A nossa experiência ordinária demonstra, seja de maneira implícita ou explícita, que há uma permanência do passado no momento presente, entretanto esta permanência não é inerte ou estática. Ela é atuante e constantemente reconstruída de diversas formas, de tal maneira que, mesmo o que poderia ser considerado uma reincidência de eventos, pode se dar por diferentes vias de expressão. A permanência de eventos passados como condicionadores de ações presentes e futuras é um elemento fundamental, por exemplo, na teoria psicanalítica.
Os processos terapêuticos próprios da psicanálise tratam situações traumáticas pela via da assimilação e não da extirpação. Entendo que esta prática já sugere os caminhos que podemos tomar, mesmo quando escolhemos não fazer uso deste tipo de cura. Ao considerar que não apagamos as nossas cicatrizes, assim como o nosso passado e, nele, as coisas que nos marcam, entendo que temos de aprender a conviver com o que somos e com o que fizemos. Isto parece algo simples e fácil de ser feito, porém, dependendo da intensidade como os fatos vivenciados nos afetam, pode transformar-se em uma tarefa gigantesca.
Curiosamente, na minha modesta opinião, acho que a luta interior, que em algumas pessoas é bastante consciente e, na grande maioria, é inconsciente, deve chegar a um ponto onde passe por um processo de reconciliação, ou seja, o momento em que devemos depor as nossas armas e nos reconciliarmos com nós mesmos. Essa reconciliação significa reconciliar-se com as próprias fraquezas e erros, reconciliar-se com os momentos de sofrimento e dor, reconciliar-se com as perdas e os ganhos da vida, reconciliar-se com os fracassos e com as expectativas desmedidas. Tornar-se capaz de conceder a si mesmo um perdão suficientemente efetivo para permitir seguir novos caminhos e descobrir-se mais apto e mais forte para encarar a contínua novidade que é a vida, porque nós nunca superamos as nossas cicatrizes, apenas aprendemos a conviver com elas.

23 de mai. de 2007

...

Às vezes a represa contém uma força que é maior que as suas possibilidades de contenção. A partir de uma pequena fissura, toda a sua estrutura pode ceder.
Toda a energia necessária para conter a fúria da natureza, todo o desgaste que foi acumulando-se progressivamente até o clímax onde se desfaz a retenção, transforma-se em pedaços de resistência desfeita, espalhados sem intenção específica, tornados leito e fundo do rio que pacientemente aguardou o tempo de sua liberdade.
Às vezes a represa é entrave, um obstáculo ao fluxo da natureza e um embaraço difícil de se livrar. Ás vezes é apenas um monumento constrangido por velar um rio morto. Sem águas, sem forças, sem vida.
Às vezes a represa deveria estar ali, às vezes não. Às vezes deveria conter as águas, às vezes não.