30 de set. de 2005

Artigo - Rascunhos

"Só vejo um meio de saber até onde podemos ir: é colocar-se em marcha." - Henri Bergson

Tentei me esmerar, sempre, em produzir o bem acabado. A coisa pronta, finalizada. Se me perguntassem, hoje, o que foi possível fazer seguindo tais anseios e eu respondesse com alguma franqueza, ainda que envergonhado, teria de dizer que quase nada.
Tememos a contestação, a crítica, a indiferença, a vaia e o desprezo, quando deveríamos temer a inércia. Todo o caminho tem os seus percalços, cobra os seus tributos, exige uma atitude, mesmo assim, para seguí-lo, é preciso estar nele, não na imaginação, não na antecipação, não na ansiedade, mas somente nos passos, no andar.
Nos preocupamos demasiadamente com o destino de nossas andanças, com aonde vamos chegar. Simplesmente esquecemos que só há um destino, comum a todos, para aquilo que chamamos vida, a saber, a morte. Se tivermos, em algum momento, dúvidas acerca do local para onde os nossos passos nos levarão, é certo que não precisamos duvidar do fato de que há esta escala obrigatória para todos.
Ao pensar seriamente na morte, notaremos que ela não passa de uma abstração. Não trazemos conosco uma experiência que possa servir de referencial para que estabeleçamos uma idéia clara do que representa. O máximo que poderíamos fazer seria esboçar uma relação negativa com a vida, fazendo isso, seríamos obrigados a defini-la, transformando-a em uma caricatura de si mesma.
Para um materialista, que vê no término da vida o respectivo fim da consciência individual, pensar na morte seria pensar na condição em que não há pensamentos e, obviamente, o fruto desta reflexão só pode produzir idéias difusas e incoerentes consigo mesmas, portanto vazias e sem sentido.
Por outro lado, para um espiritualista, que não reconhece esta conotação de término da consciência individual, a morte não existe e pensar nela não pode produzir resultado muito distinto da inocuidade de uma reflexão materialista, conforme dito acima.
Poderíamos concluir, então, que a idéia do fim, embora assombre a nossa existência, possui pouca utilidade, não conduzindo a qualquer forma de esclarecimento, senão ao medo e a fantasias que só servem para anular aquilo que é real: a vida.
Embora tenhamos a impressão de, ao tratar deste assunto, estarmos a falar de uma intersecção que nos nivela a todos em um mesmo ponto de finitude existencial, do exercício de refletir acerca da morte em si, nada podemos extrair.
Concebendo as coisas deste modo, a vida pouco se apresenta como a realização de alguma meta, sendo mais uma caminhada. Importam nela os passos que se dão, o ritmo que se anda, o caminho que se escolhe, a paisagem que a emoldura e o fluxo que a acompanha. Isto mesmo, vida é fluxo, continuidade, é em si e no devir. É um rascunho.
Diante disso, como pensarmos em obras acabadas? A obra acabada é a idéia morta que teve cessada a sua existência. Alguém disse que o artista não finaliza a sua obra, a abandona. Isto só acontece porque nós não podemos completar as coisas senão destruindo-as. A marca da vida é a existência de possibilidades. Findas as possibilidades, finda-se a vida.
Aquele que afirma a si mesmo não possuir possibilidades, acreditando estar preso a amarras que o impedem de ser e pensar de outra forma, sem o perceber, coloca-se naquele beco escuro que é o altar aonde são feitas as pregações em defesa de tudo o que é não-vida.

27 de set. de 2005

As crianças...

Menina de 5 anos. Passa alguns segundos calada...
De repente solta a frase:
- Pai, tudo é pensamento, né?
O pai foi surpreendido por aquela máxima, vinda de lábios tão pequenos e, ao mesmo tempo, tão profunda. Entretanto, estranhou mais a ressonância inesperada, pois as suas reflexões não passavam muito distante dali.
- É filha, tudo é pensamento...
Sobrou ao pai o incômodo de saber que a “educação” e o convívio social fariam de tudo para esmagar esta percepção originária, tão lúcida e pura.

23 de set. de 2005

Artigo - Daquilo que somos

Não creio que possamos almejar muita coisa na vida. Todo e qualquer sonho grandioso para o homem, quando colocado diante da imensidão do todo onde ele está inserido, parece pequeno e sem graça. Muitas vezes nos sobra somente o tamanho da nossa finitude. Curiosamente, é quando abandonamos os delírios de grandeza; que parecem mais a expressão da revolta que nutrimos em relação a uma intuição de impotência que não nos abandona do que a certeza de que somos capazes de feitos significativos; é que abrimos o caminho para nos tornarmos grandes.
A arrogância humana só é possível se ignorarmos, deliberadamente, a nossa pequenez. Diminuir o tamanho do universo, aumentar a importância de nossas idiossincrasias, superestimar o nosso conhecimento, entre outras coisas, são alguns dos expedientes que utilizamos para elevar a nossa estatura e que, ao mesmo tempo, turvam a nossa visão, facilitando a tarefa a qual nos dedicamos com tanto empenho e esmero: nos tornarmos infelizes. Nos sentimos, tantas vezes, miseráveis, porque temos uma obsessão por não nos sentirmos miseráveis. Nos falta lucidez, nos falta discernimento.
Nesta ânsia de não nos sentirmos pequenos, geramos, cada qual a sua maneira, as ilusões que nos fornecerão o sentido, o propósito, sem os quais não somos nada. São estas ilusões que servirão de esteio para a interpretação dos nossos desejos, das nossas aspirações e, acima de tudo, de nosso vazio. Sim, não há como negar, carregamos conosco um vazio. Não nos assustemos com os monstros, os terrores. A nossa maior fobia é o vazio, tanto que sequer falamos dele, sequer pensamos nele, sequer o reconhecemos, com medo de, ao sussurrar seu nome, ao evocar a sua presença, ele apareça e nos devore de tal forma que venhamos a desaparecer. Isto, entretanto, jamais evitou que nos assombrasse os sonhos e a realidade, que nos espreitasse por entre as sombras que se produzem nas nossas dúvidas. O esconjuro de tal temor parece ser um só, a saber, o preenchimento e, aqui, o que nos falta em qualidade, sobra em quantidade.
Não somos algo estático. Heidegger explicita com lucidez que o ser humano (Dasein) é um ente que se diferencia dos outros entes, pois ele sendo, "está em jogo o seu próprio ser". Não somos algo que possa ser esclarecido por um é. Podemos dizer que a cadeira é azul, que a pedra é dura, que a mesa é branca. O homem, no ato de ser o que entendemos que ele é, está diante da possibilidade de ser de outra forma. Não podemos nos definir como objetos, somos um trânsito. É possível que, aceitando esta condição em nós mesmos, percebamos que a própria realidade partilha deste contínuo. Espinosa define que a essência do ser humano é "o esforço de perseverar na existência". Esta afirmação não determina um é, determina um modo de ser. Assim, percebemos o esforço dos filósofos na tentativa de capturar a intuição que possuem do movimento, da continuidade da existência humana.
Sob esta perspectiva, parece que, mais autênticos que nossas aspirações, nossos projetos, nossas crenças, nossos objetivos, são os movimentos de nosso espírito. Os primeiros nada mais são que as interpretações distorcidas (Espinosa dirá "percepções mutiladas e confusas") dos segundos.
Projetamos o que pretendemos "ser" como se pudéssemos traçar linhas de chegada. Ignoramos a natureza própria e dinâmica de nossa condição existencial. Transformamos o movimento em imagens congeladas, estáticas (Bergson percebeu isto de forma clara e inequívoca). Transformamos o fluxo da vida em fotografias de fatos. Não vivemos, estabelecemos marcos.
Falamos do que queremos como se soubéssemos o que fosse o querer. Referindo mais uma vez a Espinosa, ele diz que não desejamos as coisas porque elas sejam boas, acreditamos que elas sejam boas porque as desejamos. No ato de interpretar o movimento interno e lhe dar significado, transformando-o em desejo, também promovemos a sua paralisação. Quero um carro novo. Quero uma casa nova. Quero um computador. Quero comprar roupas. Quero um amor. Quero ser médico. Quero ser engenheiro. Quero ser advogado. Pontos aonde queremos chegar e, chegando neles, permanece o vazio, permanece a incongruência.
Não podemos ser algo desejando, ansiando, projetando, planejando. Somos somente de uma forma: sendo. Somos quando damos vazão ao movimento próprio da nossa natureza. O que somos não é um destino, é algo que vivenciamos, é a existência propriamente dita. Para tal, é preciso assumir, simplesmente, ser o que é. Um poeta não se diz poeta, não assina como poeta, ele faz poesia, ele vê o mundo com olhos de poeta. Um médico não é médico por dizer que é ou por usar jaleco, ele simplesmente pratica a medicina. Ele se assume, num dado momento, como médico, podendo, de uma hora para outra, ser outra coisa. Não somos pelas etiquetas, não somos pelo que queremos, somos pelo que fazemos, somos pela forma como vivemos.
Se há algo que deveríamos nos ocupar em fazer é retirar as amarras, remover os entulhos que obstruem o caminho daquilo que somos, para que, simplesmente, venhamos a ser. Só temos uma obrigação na vida, nos assumirmos, mas como isto é difícil!

22 de set. de 2005

Lições...

Mestre e aluno. Um em frente ao outro. O aluno solfejava todo atrapalhado a escala de dó no modo dórico (ele sempre teve dificuldades com solfejo).
Pausa para descanso, o aluno pergunta:
- Há toda uma técnica para cantar, não há?
- Claro que há! – responde o mestre.
- É claro que devemos estudá-la, não é?
- Se quiseres cantar bem, tens de aprendê-la.
- Tudo o que aprendemos, mesmo que a prática contínua nos permita executar à perfeição o que nos for solicitado, não pode simplesmente se esvaecer, diante de uma platéia, consumido pela comoção que os sentimento provocam.
- É claro que sim! Não aprendeste que, no canto, o instrumento é o teu corpo? Não sabes que, quando estás nervoso, inquieto, angustiado, a tua musculatura se enrijece, a tua postura se altera, a tua concentração se perde? Nenhuma técnica do mundo permite a um intérprete executar com perfeição qualquer peça se o seu instrumento não está em adequadas condições para produzir música. Imagine um violino quebrado ou desafinado. Imagine um piano sem cordas. De que adianta a técnica do violinista ou do pianista em situações assim?
- Então, o que fazer quando o que nos falta não é o conhecimento, mas o controle para utilizá-lo quando necessitamos?
- Cada qual escolhe a maneira que melhor lhe aprouver para superar este obstáculo. Posso lhe dizer, todavia, que, para mim, este é o momento da fantasia.
- Momento da fantasia?
- Sim. O momento da fantasia é aquele momento em que suplantas o comum, o natural e assumes definitivamente que ele te pertence. Não importa o teu tamanho, só conseguirás ser grande se te pensares como grande, só conseguirás ser sublime se te pensares como sublime. Ali construirás a fantasia daquilo que és e, se tiveres suficiente convicção e empenho, te tornarás ela.

Naquele dia, o aluno saiu da aula pensativo, pois entendeu que o sofrimento do corpo e do espírito não desafina somente o canto, desafina a vida.

21 de set. de 2005

Espaços que não se preenchem...

O amor nunca vivido
A sede não saciada
O gosto nunca sentido
A vida desperdiçada

A perda de quem partiu cedo
A ausência que é como um castigo
Ou trazer sempre consigo
A angústia, a ansiedade e o medo

A face já esquecida
O sonho abandonado
A vontade adormecida

O beijo nunca beijado

18 de set. de 2005

Artigo - Profissão

De tempos em tempos eu me estranho com alguma palavra. A bola da vez é profissão.
Não sei se isto ocorre de forma espontânea e casual ou se é porque esta palavra vive dançando de forma bem desengonçada na boca de todo o tipo de pessoa, em todo o tipo de circunstância, a toda hora.
No sentido mais simples possível, profissão é ato ou efeito de professar. Por sua vez, professar significa reconhecer, confessar publicamente, ensinar, abraçar, seguir e, também, exercer. Na sua origem etimológica, "declarar diante de alguém".
Entendo que o sentido de profissão aparece na integração de duas perspectivas. Na primeira, a forma imediata remete ao público, isto é, a uma manifestação de cunho ostensivo onde o indivíduo se revela publicamente como alguém que segue um determinado caminho, possui uma determinada convicção, pratica algo, adota uma crença. Todavia, para que haja esta manifestação, ela deve ocorrer, antes, na interioridade e este aspecto representa o segundo âmbito conceitual do termo. Para que eu possa professar uma crença, necessito internalizá-la antes. A convicção, por menor que seja o radicalismo de sua fundamentação (entendam radicalismo no sentido próprio da palavra, daquilo que se refere às raízes) , é algo que se projeta a partir da interioridade humana. Assim sendo, o professar é algo que nasce de uma posição própria, individual, e se propaga para o coletivo como um ato público de afirmação.
Em relação a isso, muitos dirão que é comum as pessoas trazerem consigo convicções que não são mais do que subproduto de convicções alheias.
Respondo a este argumento da seguinte maneira: pensemos em um objeto que os nossos olhos já viram, algo simples como uma bola. Uma bola vermelha, com diâmetro não superior a 30 centímetros. Imaginemos agora que estamos próximos a alguém e lhe descrevemos o que vimos. O objeto jamais estará nos nossos olhos, ou na nossa imagem mental ou na linguagem que usamos para descrevê-lo. E, ainda assim, estará lá. Este processo não pode ser executado sem que, de uma forma mais ou menos superficial, o objeto em questão seja internalizado. Não é possível exprimir a bola sem fazer com que ela passe pela nossa consciência. Ao descrevê-la, não a estaremos transmitindo diretamente, senão a consequência de a termos absorvido e compreendido de uma dada maneira, assim como, a nossa maior ou menor capacidade lingüística para fazer a descrição. Se isto acontece com um objeto aparentemente simples e tangível como a bola, o que se dizer das idéias. Não é possível que elas entrem e saiam da nossa mente sem nos afetarem ou serem afetadas por nós.
Este processo de internalização é interessante, na medida em que podemos repensar os sentidos usuais que são dados às palavras profissão e profissional, diante do exposto acima. Entendemos usualmente profissão como uma atividade laboral específica, que envolve o domínio de certas técnicas e respectivo reconhecimento social, sendo profissional aquele que reúne as condições para exercer tal atividade e é reconhecido por isso.
Comparando a noção anterior de profissão com esta última, notaremos que elas praticamente se equiparam no aspecto público, mas se distanciam quando pensamos na perspectiva da convicção individual. A técnica, para ser aprendida, não exige como pré-requisito a aceitação daquilo que ela traz consigo como desdobramentos. Um soldado, em treinamento, pode aprender a usar seu fuzil com razoável destreza, isto, porém, não é garantia de que ele tenha convicção da possibilidade de usar este conhecimento para tirar a vida de alguém.
Chegamos agora, ao final, onde reconhecemos que o termo profissão não pode ser aplicado de forma esclarecedora a todo o tipo de prática considerada dentro do domínio de uma dada técnica reconhecida socialmente.
Tomando como exemplo um político, poderíamos nos perguntar que idéia fazemos do que concerne, essencialmente, à atividade do político? Falo essencialmente, porque acredito que somente nesta essencialidade podemos escapulir do caráter superficial da técnica e encontrarmos um conteúdo passível de convicção. Não importa que a prática política que nos parece mais comum se conduza por caminhos que consideramos reprováveis. De modo geral, acreditamos que o político é alguém que deve (ou deveria) trabalhar pelo bem comum e esta é a essencialidade desta atividade, isto é, o bem comum. Se um político, no exercício da atividade política, tem como finalidade a vantagem pessoal e não o bem comum, não podemos dizer que ele professa, ou traz consigo a convicção de ser político, mas sim que ele professa o oportunismo, sendo esta a sua profissão. De forma similar, o médico teria, na essencialidade de sua atividade, o encargo de se ocupar do bem-estar da pessoa humana. Se este se enreda em um caminho de ganância, o que professa é justamente a ganância e não o bem-estar de seus pacientes. Que nome poderíamos dar a esta prática, até então chamada de profissional, que traz desvinculadas na sua operosidade a técnica e aquilo que consideramos sua finalidade essencial, justificadora de sua existência? Eu chamaria de ofício, mas creio que outros termos são possíveis.
Colocada a questão desta forma, nos caberia indagar o que, então, professamos nós, na essencialidade de nossos gestos e palavras. Não há como negar, retirado todo o entulho que representam os ornamentos que trazemos para maquiar a visão do que somos e fazemos, sobrará somente o autêntico e o real. Quem tem coragem de contemplar isto com a vista nua?

13 de set. de 2005

O Choro

Apanhou uma garrafa plástica de água mineral, daquelas grandes, de 5 litros. Uma caixa de chá de camomila (dizem que chá de verdade só se for de camelia sinensis, o restante são infusões, mas, se eu escrevesse assim, ninguém iria entender). Foi ao caixa para pagar as mercadorias.
Uma mulher atendia no caixa, outra conversava com ela. Não ouviu a conversa. Pareceu ter visto, meio que de soslaio, que a do caixa estava com lágrimas no rosto (não somente nos olhos). Não deu muita bola, a toda hora há alguém chorando ou sofrendo em algum lugar.
Quando se aproximou do caixa notou que era choro mesmo. A mulher que estava sendo atendida foi embora e restaram somente os dois: a chorosa e o indiferente (era um mercado pequeno).
- Não sei porque me acontece isso, me dá essa vontade chorar!
Silêncio.
- Começa assim, do nada! Não consigo evitar!
- Chorar é bom, faz bem. - falou o cliente na falta de algo melhor.
- É, mas não assim, na frente dos outros. Isso que eu tô tomando "floxetina".
- Todas as pessoas têm seus dramas.
Pagou a mulher e partiu. Ficou apenas perplexo com o fato de que, diante da expressão de angústia alheia, não soube o que dizer ou fazer. Todos têm seus dramas, mas, para quem sofre na pele, o seu drama sempre é o maior do mundo.

Devaneios...

Manhã fria, muito fria. Ao contrário da maioria, o frio ainda me atrai. Dizem que os escorpianos têm um gosto especial por dias cinzentos e nevoados. No meu caso, há um fundo de verdade nisso.
Muitos anos atrás, quando era um caminhante solitário, atravessava a cidade, perdido em devaneios, andando e andando. Gostava de sentir o vento frio batendo no rosto. Gostava de ver as árvores desfolhadas, mas vivas. Sinto falta de não fazer mais isso com freqüência.
Como disse outras vezes, sempre fui um pouco (ou muito) melancólico e nada combina melhor com a melancolia do que o outono e o inverno.
Este gosto pela poesia do frio talvez fosse algo de gaúcho, talvez das raízes européias ou, quem sabe, de uma vida passada. Entendia o meu jeito calado, introspectivo, olhar perdido no horizonte, como manifestação de uma nostalgia pelo antigo continente. Descobri um dia, porém, que Borges colocara o mesmo olhar nos olhos dos peões que miravam o horizonte dos pampas.
Mais próximo de mim, Vitor Ramil desenhou este sentimento em música e me fez ver o quanto, sem ser regionalista, estava entranhado nesta terra.
Descobri a minha natureza terceiro-mundista, o fato de viver abaixo do Equador e vi que isso era uma benção. Havia, afinal, cura para a nossa arrogância caucasiana.
A superioridade civilizada do primeiro mundo é uma falácia, recoberta com grossas camadas de verniz. Ela só pode ser sustentada com a impaciência que temos em provar que somos inferiores e indignos. Mesmo assim, não podemos jamais esquecer que não temos feito a nossa parte...

11 de set. de 2005

Devaneios...

Costumava ter uma memória prodigiosa e confiava nela como jamais confiei em ninguém (aliás, essa coisa de confiar, com relação ao que penso, renderia quilômetros de reflexões, ou uma tese). Tanto que, no tempo em que eu acreditava estar predestinado a ser um grande músico e compositor, escrevia as letras das músicas, mas jamais anotava os acordes, as linhas harmônicas e melódicas, a minha memória me sustentava.
Como já não me abalava mais com a instabilidade e conseqüente infidelidade das pessoas, a vida achou por bem me pregar mais uma peça e me mostrou que a memória também pode ser dolorosamente infiel.
É claro que sempre houveram coisas que faziam tropeçar a minha capacidade de lembrar. Sempre tive dificuldades para lembrar nomes, às vezes fisionomias e, quase sempre, parentescos. Como memória também tem haver com interesse, temo que esta dificuldade estivesse atrelada a pouco me importar com estas coisas, pois sempre acreditei que, por trás destas legendas, havia uma autenticidade, uma pureza, algo que melhor definia o ser humano que as etiquetas habituais. Nunca, jamais, esqueci os gestos, as atitudes. Com o tempo aprendi a perdoar e a desconsiderar, mas não a esquecer.

Porém, hoje, aquela memória instrumental que utilizamos para estocar milhões de futilidades está patinando. Talvez ela nunca tenha alterado a sua capacidade, como um hard disk de computador. Quem sabe fui eu que a preenchi com um número demasiadamente grande de lembranças. Guardei muitas pequenas imagens, sons e odores que acabaram por embaralhar o resto.
Penso, em alguns momentos, que é na lembrança do passado que imprimimos movimento ao presente e assumimos com inteireza aquilo que somos. Ou talvez isto seja apenas mais um dos meus devaneios, quem sabe?

9 de set. de 2005

Artigo - Os Vícios

Trabalhei em uma empresa que estava em processo de falência. Durante alguns meses, antes de finalmente encerrar as suas atividades, ela não produziu nem pagou os salários, mesmo assim, os funcionários compareciam todos os dias, cumprindo religiosamente os horários. Ali ficavam, disfarçando, buscando o que fazer, esperando...
É natural que, nestas circunstâncias, haja um sentimento generalizado de insegurança. A maior parte das pessoas trabalha por necessidade e não por prazer. O sacrifício, senão a submissão diária, é parte do preço da sobrevivência. Poucas vezes pensamos nisto, mas não precisamos nos esforçar para perceber que cada qual traz consigo um drama, uma amargura que é mal ou bem resolvida, dependendo disso a qualidade e a quantidade dos sorrisos que oferecemos àqueles que compartilham de nossa caminhada. Naquele momento, a apreensão era por não saber como pagar a luz que já havia sido cortada, a água que ainda iria ser e, principalmente, como alimentar os que dependiam do dinheiro que não iria chegar.
As misérias humanas que realmente dóem não são ligadas a nada de pretensamente grandioso. Muitas vezes acreditamos que a frustração do atleta que ficou com o segundo lugar, do time que perdeu a final na frente de sua torcida, do candidato derrotado nas eleições, de não ter passado no vestibular, de ter tropeçado e caído na cerimônia de casamento ou de não ter passado de ano, são os maiores sofrimentos a que podemos ser submetidos. O que representam esses reveses diante da dor que acomete aquele que se vê pequeno, insignificante, despido da dignidade e da possibilidade de se conceder algum valor, por se ver reduzido à condição de incapaz para prover o sustento de sua família. Mesmo assim, os funcionários compareciam, menos por disciplina e fidelidade que por não saberem o que fazer e para onde ir. A grande maioria estava suficientemente domesticada para aceitar que, assim como não seriam mais alimentados, não eram mais subordinados a uma ordem que há bem pouco regulava as suas vidas.
Alguém que viveu passando a maior parte do tempo abaixado, estando aprisionado em uma casa demasiadamente pequena, ficará com as costas curvadas de tal forma que lhe impedirão de andar ereto. Igualmente, nós estávamos deformados para pensar e agir, como se ainda estivéssemos presos às invisíveis amarras do considerado conveniente e seguro. Percebo que tanto quanto nos ligamos às nossas rotinas, nos ligamos às nossas insatisfações, frustrações e medos, porque, como nos acompanharam ao longo do tempo, fazem parte daquilo que entendemos ser a vida, sendo difícil conduzir o pensamento por outros caminhos que não os já conhecidos.
Muitas são as prisões possíveis para um ser humano, porém acredito que a mais comum, persistente, dissimulada e deprimente é aquela que habita no interior do nosso pensar e escraviza a nossa maneira de agir. Jamais poderemos nos considerar livres se não percebermos isto com suficiente clareza e nitidez.

5 de set. de 2005

Artigo - Simplicidade Filosófica

Quando nos predispomos a compreender algo que não nos é familiar, pensamos que a primeira abordagem a ser feita é a dos aspectos mais simples que envolvem a questão estudada, tendo em vista facilitar o nosso acesso, através de uma eventual identificação do novo com o conhecimento que já possuímos. De certa forma, é isto que apregoa Descartes, quando defende que devemos partir dos problemas mais simples, evoluindo para os mais complexos, na medida em que as soluções forem encontradas.
Se aplicarmos isto à comunicação verbal, pressupomos que a formulação de uma frase já subentende a compreensão implícita das palavras que a compõem, embora o significado desta composição transcenda a pura soma de seus significados.
Parece simples definir o o significado de uma palavra, bastando-se recorrer a um bom dicionário, mas esta é uma questão, ao meu ver, ampla e instigante, visto que a palavra é um signo e, como tal, se reveste de toda a complexidade do processo de atribuir e interpretar os significados.
Quando penso em encontrar definições plausíveis de serem transmitidas, uma palavra que ocupa a minha atenção hoje e continuará ocupando por muito tempo é Filosofia. Obviamente, não levo em conta aqui as diversas aplicações cotidianas onde ela apaprece, no meu entender, de forma imprópria. Não pretendo tratar desta questão agora, senão usá-la para evocar uma perspectiva sobre o assunto.
Henri Bergson (1859-1941), filósofo francês, afirma que a Filosofia é simples, muito simples.
As noções pessoais que podemos construir acerca da Filosofia derivam dos diversos graus de contato que podemos ter com a sua prática. O contato mais distante e tênue provém do senso comum do grupo social do qual fazemos parte. O contato pode se dar, também, através de uma referência indireta de algum professor ou autor estudado. Por meio da atividade de cursar uma disciplina com vínculos estreitos em relação a algum pensamento filosófico. Da leitura de algum comentador. Da necessidade de se realizar um trabalho de aula. Da frequência em um curso regular de Filosofia. Na verdade, em todas estas circunstâncias, seja pela mística de quem desconhece, seja pela experiência de quem já se dedicou a profundos estudos, a opinião geral é aquela que vê a Filosofia como uma coisa muito complexa e de difícil compreensão (alguns dirão que, além disso, não possui utilidade alguma).
O que faria Bergson considerá-la, então, diferentemente da maioria, algo tão simples? Seria uma posição egoísta de alguém que arrogantemente, após adentrar certos "mistérios", resolve tripudiar dos que não possuem a mesma capacidade? Não, não é este o caso.
Bergson vê o discurso filosófico, ou seja, o conteúdo escrito das obras dos filósofos, como uma ação antecedida por uma intuição. Na sua compreensão, a realidade é duração e movimento. Ela se prolonga como um contínuo, sem início ou fim. A mente humana, no processo de torná-la inteligível, elimina o movimento, tranformando-o em uma sucessão de quadros estáticos, a exemplo de um filme, onde as diversas fotos são colocadas em sequência, dando a ilusão de movimento.
Assim sendo, Bergson distingue a inteligência da intuição, pois, se a inteligência fragmenta e congela o movimento, a intuição o percebe como é de fato. Então, o filósofo se esforça em descrever a intuição que teve, se utilizando da linguagem disponível, muitas vezes fazendo como a ciência, ou seja, aprisionando a realidade em uma imagem estática, devido à insuficiência de seu instrumento, a linguagem. Lembremos, porém, que este instrumento não serve apenas como meio de comunicação com os outros, a linguagem é utilizada para a construção da nossa própria compreensão. O nosso pensamento se manifesta como uma composição de caráter linguístico que expressa uma intuição original, distante da própria constituição daquilo que concebemos como real. Em virtude disso, na maioria das vezes, a nossa linguagem não somente é a forma como conseguimos expressar as nossas intuições, senão a forma como as compreendemos.
Neste sentido, Bergson diz que a Filosofia é simples, visto que a intuição que a motivou também é simples, elementar e pura. É o esforço de converter esta intuição original, primeiro em pensamento e, depois, em palavra, que torna complexa a expressão filosófica. Isto nos faz pensar que, talvez, além da compreensão intelectual que pode ser suscitada pelo texto, o escrito é também um esboço, uma insinuação de algo maior, não descrito explicitamente pela sua impossibilidade de sê-lo.
Se os intrincados meandros da tradição filosófica são a expressão de algo essencialmente simples, o que não se dizer do restante das nossas construções e até mesmo das nossas vidas. Não deve ser muito complicado perceber que a forma como o homem conduz as coisas, atualmente, não oferece perspectivas muito luminosas para o futuro próximo, ou estarei simplificando demasiadamente as coisas?