15 de jun. de 2007

Sucesso

O português José Saramago foi o primeiro escritor de língua portuguesa a receber um premio Nobel de Literatura, em 1998. Segundo ele mesmo conta, no momento em que foi anunciado seu nome pela comissão do prêmio estava no aeroporto de Lisboa. Procurou um telefone público para falar com o seu editor e saber qual havia sido o resultado. Ao efetuar a ligação, ouviu de uma secretária o pedido para aguardar na linha. Neste mesmo instante seu nome foi chamado no sistema de som do aeroporto, havia uma chamada telefônica. Uma moça do balcão da Lufthansa estava com o fone na mão, esperando-o. A jovem não conseguiu conter a emoção e deixou escapar: ele fora agraciado. Ao saber da notícia, Saramago teria dito algo como "Prêmio de quê?".
O escritor explica que não considerava pouco o Prêmio Nobel, não era um gesto de soberba ou de desprezo. Era aquela lucidez incômoda que, às vezes, nos assalta. Tudo é tão pouco, justifica. Que representa o nosso sucesso, que representa todo o reconhecimento e poder dos homens, que representa um prêmio Nobel diante das estrelas, dos mundos, da vida, do universo...
Tenho para mim que a história de cada pessoa é singular, portanto é insólito pensar que uma vida possa ser mais singular que outra. Por outro lado, há histórias onde a vida parece clamar por atitudes, por aberturas, por espaço para se manifestar. Muitas vezes, as pessoas se esforçam para calar este chamado, pois os chamados da vida, quase sempre, incitam ao novo, ao incerto, ao risco. O mundo dos homens é rico em preceitos e proibições. O tabu dos tempos atuais é o fracasso, o erro e a fraqueza. Assim, é melhor calar vozes, mesmo que internas, que possam nos induzir ao "ridículo". Há pessoas que, ignorantes que são, ignoram os avisos daqueles que tem o "bom senso" e, ao invés de seguir por trilhas cansadas de tão pisadas, resolvem abrir seus próprios caminhos. É possível que José Saramago seja uma destas pessoas.
De origem humilde, o escritor, antes de ser escritor, aprendeu na escola técnica o ofício de serralheiro mecânico, vindo a trabalhar numa oficina de automóveis. Teve vários empregos (serralheiro, desenhista, funcionário da saúde e da previdência social) antes de publicar o seu primeiro romance, Terra do Pecado, aos 25 anos. Não sei se pode ser dito que este tenha sido o início de sua carreira literária, pois se passaram quase vinte anos até que viesse a publicar novamente. Neste período, entre outras funções, na imprensa, foi jornalista e crítico literário. Entretanto, é somente em 1975 (quando tinha 53 anos) que decide dedicar-se somente à escrita, após ser demitido do cargo de diretor-adjunto do jornal Diário de Notícias, passando a manter-se, durante algum tempo, com o trabalho de tradutor. Os críticos literários consideram que a produção literária de Saramago acentua-se visivelmente após os seus 55 anos de idade.
Os grandes escritores dominam a arte de escrever com profundidade. Escrever com profundidade não significa escrever um texto com ambigüidades que, aos incautos, parecem expressão de grande sabedoria, mas um texto com significados em camadas, permitindo que o leitor penetre-o muitas vezes e, em cada uma delas, possa encontrar novos conteúdos, dando vida à aparente aridez da letra morta que é posta sobre o papel. Saramago começa o seu discurso da entrega do prêmio com a seguinte frase: "O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever." Esta frase fazia referência ao seu avô, um camponês com o qual conviveu em sua infância e adolescência. Esta frase pode possuir uma série de significados, mas o que, ao meu ver, primeiramente emite é um alerta, um chamado à humildade.
Vivemos em um mundo de injustiças e de farsas. Pergunto-me se é por acaso que um dos maiores mestres da literatura contemporânea cita que é neto de analfabetos e fala disso não naquele sentido que nos acostumamos a ver nos filmes americanos, onde a origem humilde serve para que o personagem possa se gabar de ter atingido o sucesso, a realização do mito e do ideal do self made man. Não, o autor, o letrado, diante de uma platéia de luminares, quando os olhos do mundo estão sobre si, não presta o seu maior tributo a Virgílio, Dante, Cervantes, Goethe ou Shakespeare, presta-o a seu analfabeto avô, "o homem mais sábio que conheceu". Saramago, no mundo globalizado da pressa e do lucro, que produz doutores, intelectuais e artistas em escala industrial, resgata a dignidade de alguém tragado pelo tempo e esquecido pela sua "insignificância". Diante de tanta pompa e luxo, foi a presença onipotente da figura do camponês analfabeto que calou uma platéia para que se escutasse as lições que ensinou ao literato reconhecido.
Alguns dizem que só podemos falar da história de alguém quando ela está concluída. Considerando o pressuposto implícito a quase toda concepção histórica que é o de fatos dispostos em uma linha de tempo, tal argumento é válido. Porém, seja por licença poética ou por romantismo de alguns eruditos, a história passou a evocar, também, a multiplicidade simbólica que é própria da vida humana, contínua enquanto existente e persistente na língua, na memória e nos objetos, mesmo após a morte. E é na idéia de continuidade que, fazendo uma pausa na vida de Saramago e olhando-a em perspectiva, sabendo que esta casuística é imprópria e indigna da vida de qualquer um, pergunto: este escritor é um homem de sucesso? A obviedade da resposta inibiria que um leitor imprudente fizesse tal pergunta, mas não sei se posso inscrever o meu nome no rol dos prudentes e por isso a faço. Receber um prêmio que, por muitos, é considerado a maior dignidade que pode ser concedida a um escritor significa, à primeira vista, o coroamento de uma carreira de êxito, mas insisto: é Saramago um homem de sucesso?
Se cedo à pressão do senso comum e aceito que ele é um homem de sucesso, reconheço isto pelas suas obras. A suas principais obras vieram a lume após os seus 55 anos, então hoje posso dizer que ele possui sucesso, mas se fizesse esta análise quando ele possuía 50 anos, diria, então, que era um escritor fracassado? Qual o valor do Saramago de 30 anos?
Muitos dirão que a obra do escritor se deve ao seu gênio. Usar o termo gênio é muito cômodo, pois é como uma mágica que nos livra de ter que dar alguma explicação. Qual o valor do gênio quando o seu segundo romance não foi aceito para publicação? Qual o valor do gênio de Saramago quando foi demitido aos 53 anos? A nossa cultura considera normal pensar que uma pessoa com mais de 50 anos não tem com que contribuir, ao mesmo tempo em que não esperamos que ela produza algo de significativo para os outros e, talvez, para si mesma.
Normalmente somos tão tomados pelas convenções sociais que se torna difícil perceber quantas convenções Saramago burlou. Da origem humilde e sem formação para o reconhecimento mundial como um dos maiores mestres da escrita de nosso tempo, de uma carreira mediana e comum para o sucesso após uma idade que se considera reservada à aposentadoria. Este caminho não deixa incólume a ninguém e se concede algum poder é o de reconhecer o vazio das convenções e a certeza de que não se deve nada a elas.
Não somente com sua obra, mas com seu exemplo, José Saramago resgata a dignidade dos excluídos. Dos excluídos pela pobreza, dos excluídos pela ignorância, dos excluídos pela idade. Dos excluídos pela violência, seja a dos ricos, dos perversos ou dos indiferentes. Diante deste exemplo, pergunto-me o que seria, então, o sucesso, pois as concepções usuais estremecem quando confrontadas com um exame mais atento e com a realidade da vida. Creio que uma possível resposta poderia começar a partir dos dizeres do ilustre escritor português: "O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever".

1 de jun. de 2007

Sonho e realidade

Falamos em tom de troça da velha pergunta que se fazia às crianças: "o que você quer ser quando crescer?". O cômico, quase sempre, procede do ato de apresentar a indagação àqueles que, pelo menos à primeira vista, já não possuem mais o que crescer. O tempo passou, o corpo mudou, o amanhã é "hoje" ou, pior, já virou "ontem". Perguntar às crianças, por sua vez, significa penetrar na leveza própria do mundo infantil, permitir o vislumbrar de um horizonte que se alarga indefinidamente, como se fosse só questão de vontade fazer de todo o sonho uma realidade. Nada destoa mais deste frescor da alma do que o mundo claustrofóbico, limitado e cinzento, que é onde, em geral, vivem os adultos.
O sonho representa um vôo esperançado para frente, para um porvir melhor. Todos nós, ao longo de nossas vidas, vivemos uma infinidade de experiências e, principalmente durante a infância, muitas destas deixam marcas indeléveis em nossas histórias e personalidades. Quando crianças, idealizamos um paraíso próprio, um mundo aparte, representado por uma profissão, uma casa, uma família ou uma carreira, às vezes apenas alguns objetos. Fragmentos da imaginação depositados no caprichoso e indiferente terreno daquilo que virá a ser. Estas projeções trazem consigo a influência direta do que foi vivido e da forma como isto foi assimilado. A aspiração por uma carreira de sucesso, por exemplo, pode encontrar o seu nascedouro na busca pela compensação de uma humilhação sofrida na infância. Então, os sonhos motivadores dos nossos grandes projetos acabam por ocupar a centralidade do universo psíquico. Alguns se sentem tão acalentados por estes sonhos que os guardam ao longo de toda a vida, como o último bastião em defesa da inocência perdida, perseguindo-os obstinadamente, por vezes deformando-os e adequando-os à crueza do mundo "real", preferindo condená-los à deturpação antes que entregá-los ao abandono. Não se trata da superação da realidade passada, com a devida reelaboração das suas nuances mais perturbadoras, é a tentativa de retorno, onde se busca não somente o resgate, mas a oportunidade de reviver o momento pretérito de uma forma idealizada, sonho que, pela sua impossibilidade, é sempre condenado à frustração. Muitos de nós, quando concebemos o porvir como superação do passado ou do presente, não percebemos que, mais do que ansiar por um futuro melhor, trazemos conosco o desejo inconsciente de reviver o passado de outra forma e, realmente, muitas de nossas atitudes podem tender para isso.
O ser humano não é uma coisa, antes disso é um movimento e, na qualidade de seres indefinidamente cambiantes, somos confrontados por uma dinâmica inefável e intransigente. Podemos insistir em não querer perceber esta realidade de contínua transformação, mas não podemos interrompê-la ou evitá-la. Assim como o organismo modifica-se continuamente, também se alteram os estados psíquicos, a interioridade. Nossas mais elevadas aspirações não fogem a este processo, embora, ao mesmo tempo, se afigurem como manifestação do nosso anseio por perenidade, por estabilidade, por segurança.
Diante disso, é possível notar que o processo de amadurecimento relaciona-se justamente com o percurso que o homem realiza, em sua existência, passando por situações agradáveis ou desagradáveis, dolorosas ou prazerosas, motivadoras ou desanimadoras, e com a forma como ele concede a si mesmo maior ou menor flexibilidade para transformar as suas aspirações, ou seja, integrando as suas perspectivas com as experiências vivenciadas.
O cotidiano é o palco de confluência de todas estas vertentes, onde são confrontadas as experiências tidas ao longo da vida, as marcas por elas deixadas, os sonhos e os temores com os quais revestimos o espanto, a impotência e a inquietude diante do mundo; a inevitabilidade da mudança constante, a necessidade de contínuo amadurecimento e o persistente impulso de prosseguir existindo.
Diante do complexo meandro que é a vida, flexibilidade significa desenvolver a capacidade para abandonar certos sonhos, valores, crenças ou ideais. Não porque nos desenvolvemos em cinismo, perdendo toda a possibilidade de esperança ou magia, passando a carregar no coração uma amargura doentia em relação à vida, mas pelo reconhecimento de que algumas aspirações, quando sacadas do universo que lhes deu origem, são pequenas e vazias, representando somente o apego que temos a certos aspectos mesquinhos de nossa personalidade.