9 de jul. de 2007

O gato traiçoeiro

Dizem por aí que não há dúvida, esta é uma história real. Não me cabe dizer se ela é real ou não, somente contá-la.
Vivia uma moça quase que sozinha no seu apartamento. Digo quase que sozinha porque dividia o espaço com um grande gato cinzento. Não é por desconsideração ao gato que digo quase sozinha, é que se tratava de um bichano soturno e quieto. Toda vez que a moça tentava o diálogo, respondia com um olhar indiferente ou um leve ronronar. O mais interessante não era o silêncio, era a impressão de cálculo, de intenção, o que nutria na moça a esperança de ser compreendida. Enfim, vivia uma moça quase que sozinha no seu apartamento com um grande gato cinzento.
Ela não era a mais bonita das moças, assim como não era a mais feia. Acho sempre arriscado falar de beleza ou feiúra, visto que as pessoas não possuem um acordo fixo acerca deste assunto. Pelo que dizem e pelo que a minha imaginação aceita, estava mais para bonita do que para feia.
Como manda a coerência, para alguém que vivia “quase” sozinha, apesar de não ser feia, a moça não tinha namorado ou noivo e, até onde se sabia, não tinha qualquer interessado. Não é recomendável a um narrador de boa índole cometer indiscrições, entretanto a discrição, muitas vezes, é um luxo que rouba a quem conta uma história o prazer da narrativa, impedindo a exposição daqueles pequenos detalhes que são o essencial de qualquer relato. Portanto não julgo indiscrição dizer que a moça tinha alguns admiradores secretos, mesmo que pensasse não merecer a atenção de qualquer homem.
Antes que me esqueça, chamarei de Amanda a até agora protagonista (e digo até agora porque é possível que não seja protagonista até o final da história, considerando a dificuldade que sempre possuiu em ser protagonista até de sua própria vida), porque fica mais fácil usar um nome do que lhe chamar de “moça”, “ela” ou “a personagem” o tempo todo. Amanda parece-me um nome bonito e elegante, com a vantagem de preservar a identidade real da jovem solitária, poupando-lhe qualquer constrangimento.
Creio ter tomado demasiado tempo do leitor falando de Amanda. Os mais rigorosos, com certeza, entenderão que poucos foram os indícios fornecidos para que a conheçamos suficientemente bem, porém dizem que não há muita coisa a mais que possa ser acrescentada, a não ser que a moça, Amanda se preferirem, passava o dia a trabalhar e a noite a estudar, sendo que o seu apartamento era mais propriedade do grande gato cinzento do que sua.
A quem interessar possa, cabe dizer que a atenção que concedemos à Amanda em momento algum perturbou o “gato cinzento”. É fato conhecido que os gatos são criaturas furtivas, sutis, silenciosas, ... Este gato, em particular, talvez fosse mais ardiloso que os outros e o fato de nossa atenção estar centrada na doce e meiga Amanda (sei que não falei isto antes, mas a Amanda era uma moça doce e meiga), propiciava uma liberdade de movimentos que muito lhe agradava.
A real natureza deste gato singular talvez passasse desapercebida a todos nós, porque mesmo Amanda, que lhe tinha como melhor amigo, desconhecia-o completamente. O que sabemos sobre ele e contaremos a seguir só foi possível descobrir porque olhos muito atentos e mais ardilosos que o felino possibilitaram trazer a lume estes fatos. Os mais ciosos da veracidade do relato tentarão atestar a fidedignidade da fonte, indagando acerca de que olhos são estes que, mais furtivos e dissimulados que o mais furtivo e dissimulado dos gatos, conseguiram captar o que alguém jamais viu? Não tenho poder para inibir qualquer investigação, só posso dizer que devo preservar a fonte de qualquer possível retaliação, mantendo-a no anonimato.
Não há uma história uniforme, bem começada, bem desenvolvida e bem acabada. Sabemos de alguns fatos esparsos e é a estes que me atenho. Certa vez Amanda, ao entrar na sala de estar de seu apartamento, não percebeu que uma das bordas do tapete estava levantada e tropeçou, caindo próxima a uma mesa de centro com cantos muito agressivos. Do acidente restou-lhe algumas feridas superficiais no joelho. Naquela semana Amanda dividiu-se entre o azar que teve ao tropeçar e a sorte de não ter acontecido um mal maior. Ela nunca soube, mas foi o gato que, sutilmente, levantou a borda do tapete para que ela tropeçasse. Não era sua intenção, pelo menos naquele momento, provocar um acidente grave, todavia deve ser dito que o gato adorava divertir-se às custas da pobre moça.
Às vezes desligava o despertador para que Amanda chegasse atrasada ao trabalho. Às vezes entupia o vaso sanitário e as pias para ver o chão encharcado, mesmo detestando água. Às vezes tirava dinheiro de sua carteira e escondia. Às vezes deixava a porta da geladeira aberta. Quando ela estava ao telefone, desligava e ligava novamente o cabo para interromper a ligação. Quando ela estava tomando banho, desligava o disjuntor de energia para que a água ficasse fria. Quando ela estava passando roupa e se distraía, lá estava o gato aumentando a temperatura e torcendo para que ela queimasse algo na sua frente. Escondia os seus sapatos e roupas. Sumia com a correspondência. Bebia todo o leite e comia toda a carne e chocolate que houvesse (o gato adorava chocolate, coisa impressionante, pois há especialistas que garantem que os gatos não sentem o sabor doce).
O mais surpreendente nisto tudo era o fato de que, seja por estupidez da moça ou maestria do gato, ela jamais desconfiou. Quando acontecia algum acidente desagradável, olhava para o gato e ele emitia um baixo e quase imperceptível miado inocente, acompanhado de um olhar solidário. Amanda sempre se julgou uma pessoa de má sorte, para quem tudo dava errado. A presença do gato gerava algum conforto para sua solidão, pois via nele alguém de confiança, diante de um mundo de insegurança, traições e vilezas. Talvez a questão não fosse ter conhecimento das traquinices do gato, pois como Amanda poderia concebê-las em seu universo, onde o silêncio do animal de estimação era um claro sinal de cumplicidade? Como poderia imaginar que a sua passividade não era tão passiva assim e que, ao contrário, o grande gato cinzento estava empenhado em tornar a sua vida um inferno?
As razões do gato são desconhecidas. Não é possível afirmar se ele é naturalmente mau. Se tem uma antipatia pela moça, daquele tipo que alguns parentes têm entre si e que nada parece demover. Se tudo era pura galhofa ou, o mais provável, se era só tédio. Talvez o escape do tédio para Amanda fosse a autopiedade e o escape do gato fosse dar motivos para a autopiedade de Amanda, quem sabe.
Como acaba a história? Até onde sei, não acaba. Parece que ainda hoje Amanda continua sofrendo nas mãos, ou melhor nas patas, de seu gato. Deve ser reconhecido que o bichano manteve o seu padrão de qualidade com criatividade e dedicação, buscando sempre novas e eficientes maneiras de cumprir as suas tarefas. O que fica de lição disto tudo é apenas que devemos ficar atentos. Se entrarmos na casa de uma moça com uma expressão desafortunada, que não é feia e que mora apenas com um grande gato cinzento, não devemos tirar os olhos do gato, em momento algum.