6 de out. de 2006

Convicções

Há um dito popular que recomenda evitar discussões sobre política, futebol e religião. O sentido implícito de tal recomendação é a prudência e isto se deve à natureza polêmica destes temas, embora acredite que esta recomendação justifica-se menos pelos temas e mais pela forma como, em geral, são tratados.
Quando duas pessoas estabelecem uma relação de diálogo, podem discutir acerca de questões sobre as quais estão de acordo, sobre as quais discordam em alguns pontos e concordam em outros, ou ainda acerca de questões sobre as quais discordam completamente. Geralmente, todos temos baixa tolerância à discordância em relação aos nossos pontos de vista, entretanto há circunstâncias em que esta tolerância é menor ainda. Nestas situações específicas, somos pouco permeáveis ao poder da argumentação e mais resistentes aos artifícios da persuasão. Notaremos, então, que o que está em jogo não é simplesmente uma opinião, mas sim uma convicção.
As convicções, quer queiramos ou não, em grande parte, são predisposições subjetivas. Mesmo aquele que julga fundamentar as suas convicções em elementos racionais bem construídos, traz no fundo de seus arrazoamentos as inclinações que lhe são próprias. Soma-se a isto as influências que recebe do meio social e as marcas deixadas pelas experiências positivas e negativas que teve ao longo da vida. Portanto, falar em impessoalidade e objetividade como traços a serem buscados na consolidação de nossas convicções, embora pareça, à primeira vista, uma atitude desejável e louvável, soa mais como uma aspiração ufanista. Curiosamente, esta aspiração mostra a sua real necessidade na constatação extrema de que, confrontados com divergências, buscamos maneiras para que as nossas convicções afirmem-se por si mesmas, independentes da nossa veemência e da força que tenhamos de lançar mão para defendê-las.
A sabedoria popular cita a política, o futebol e a religião, porque o fundamento da convicção pessoal que cada um traz acerca destes assuntos raramente é objetiva e, se formos seguir o exposto acima, dificilmente poderia ser. As escolhas pessoais possuem uma multiplicidade de elementos que lhes influenciam, inclusive o interesse próprio. A expressão "ponto de vista" já explicita que a posição pessoal é uma emanação a partir de um ponto, uma posição específica a qual se toma como referência para contemplar a realidade e sabemos que, de cada posição que o observador ocupa, desenha-se uma diferente perspectiva a sua frente. Ao confrontarmos convicções, temos, simultaneamente, o confronto das posições escolhidas para projetar a visão.
Mais do que um simples capricho, o que está em jogo, muitas vezes, é a própria articulação do discurso que desdobra o real e lhe confere significado. Ao atacarmos as convicções de alguém, por mais ridícula que ela possa parecer aos nossos olhos, estamos atacando a estrutura que esta pessoa construiu para atribuir sentido a sua experiência de vida.
Tanto quanto a nossa condição de ser vivo exige que atendamos a algumas necessidades básicas, a condição humana parece exigir o significado. Por vezes tenho a impressão de que, na defesa das nossas convicções, vertemos um grau de energia similar àquele que empregaríamos na defesa da nossa vida, como se o apego a uma pretensa idéia de unidade na consciência também respondesse ao ímpeto de sobrevivência, isto é, a ameaça à consciência e aos seus elementos de construção, entre eles as convicções, adquirem a conotação de ameaça à própria existência.
Diante disso, poderíamos propor algumas questões. Estaríamos condenados a viver na dicotomia entre o confronto contínuo dos que não se aceitam ou a proposição de ilhas isoladas, santuários das convicções inatacáveis? Aceitaríamos o dito popular, evitando todo o assunto que melindre este ou aquele indivíduo, onde acabaríamos descobrindo que não poderíamos discutir acerca de qualquer coisa?
Primeiramente, devo dizer que, no meu entendimento, não existe assunto, por mais polêmico que possa parecer, que não possa ser discutido. A prudência que poderíamos ter ao evitar alguns temas, refere-se mais a um cuidadoso desvio para não despertar a selvageria que acreditamos estar adormecida sob o fino verniz de civilização que usamos para maquiar nossos atos. O problema nunca esteve ou estará nos temas, mas sim na atitude que temos em relação ao outro. Entendo que a nossa própria condição de finitude conduz para uma necessidade de complementaridade, obtida através do intercâmbio com outras pessoas. Em outras palavras, precisamos estabelecer relações com outras pessoas, com o mundo. Precisamos dialogar e este diálogo não pode ficar simplesmente restrito a um fragmento de realidade que julgamos por bem aceitar, ele tem de estender-se para o que não entendemos ainda, para o que está ainda fora do raio de nossa compreensão. Precisamos abrir mão do refúgio que construímos com as nossas restrições e isto não pode ser às custas da aniquilação de si ou do outro.
Se tornarmos a pensar acerca da discussão com o outro, como parte do diálogo que estabelecemos com a própria condição de existir, notaremos que ela só pode ser válida quando estabelecida na base da afirmação de sua condição intrínseca de intercâmbio de espíritos e busca pelo mútuo entendimento, atividade que exige o respeito, a aceitação e a cortesia. Não pode ser constituída em uma relação assimétrica de poder, onde um tenta impor, despoticamente, a sua construção de significado ao outro. Não nos enganemos, muitas das formas de relação que consideramos como equilibradas e normais, onde parece estar presente o diálogo e a convivência harmônica, são manifestações predatórias, onde o predador não regala-se com as vísceras de sua presa, mas com o espólio da imposição de sua visão de mundo e da sua vontade.

29 de set. de 2006

A ignorância das massas

A idéia de que uma pessoa possa representar legitimamente outra é algo complexo. Pretender que alguém possa representar uma vontade que freqüentemente pouco compreende a si mesma é uma atitude que inspira cautela. É claro que, dado o grau de complexidade das sociedades atuais, certas atividades tornam-se virtuais, pela impossibilidade de serem executadas de forma direta. É o caso do exercício político, quando pensado como instância de governo daquilo que é público.

A idéia da democracia representativa corresponde a dois aspectos bem claros: o princípio de que todos possuem o mesmo direito de arbitrar acerca da coisa pública e a impossibilidade material ou institucional de todos exercerem este direito de fato. Considerados tais aspectos, a democracia representativa teria como intenção propiciar que, não podendo haver, de forma direta, a participação de todos no exercício do poder para governar o que é público, esta participação seria indireta, ou seja, os diversos grupos sociais elegeriam representantes que defenderiam os seus interesses. A própria noção de tripartição dos poderes considerou-se como medida extra de salvaguarda, onde o governo é dividido para que melhor fiscalize a si próprio.

A verdade é que este sistema, embora pareça funcionar bem teoricamente, não é à prova das falhas de caráter dos homens e se vivemos em meio a uma espécie de inferno cotidiano, boa parte disto se deve à forma como o país é governado. Muitos são os problemas que podem ser considerados de ordem pública: desigualdade social, exploração, violência, falta de assistência médica, falta de moradia, falta de emprego, destruição do meio ambiente, entre outros, e todos se constituem em motivo de desconforto para aquele que não viva em um estado de alienação em relação à sociedade do qual faz parte.

Havendo tais problemas e relacionando-os com o exercício do governo, sendo este de forma representativa, é natural que, em geral, recaia sobre os representantes do povo a responsabilidade pelos mesmos. Some-se a estes fatos, ainda, a tradição da corrupção e da prevaricação, antes falados a boca pequena e hoje escancarados para quem quiser ou não ver, matéria-prima para o entretenimento dos cidadãos de todas as idades, obra e graça do circus midiaticus.

Se o governo é exercido por representantes do povo, alçados a esta categoria pelos votos de seus pares, é natural questionar se os cidadãos que votam estão fazendo um uso adequado dos seus direitos inalienáveis de participação política. Sob certo aspecto, os representantes do povo são considerados como criminosos, na medida em que falharam gravemente com as suas obrigações, e aqueles que os elegeram aparecem, então, como cúmplices. A cumplicidade é mais fácil de ser compreendida quando há alguma vantagem para o co-autor do crime. Para o governante que é tido como criminoso, é possível construir uma imagem mais ou menos aproximada das vantagens que este pode auferir do espólio da coisa pública que, por pertencer a todos, parece não pertencer a ninguém. Mas o eleitor que é seu cúmplice, o que ganha com isso? A prática comprova que, a menos que seja suficientemente próximo para usufruir da sangria, a sua paga são os citados problemas que afligem toda a sociedade. O cúmplice, então, não peca por má-fé, peca por estupidez.

São eleitos os que possuem mais votos. A maior parte dos votos, obviamente, são oriundos da maioria. A maioria, em um país como o nosso, é pobre, de baixo grau de instrução e com pouco acesso à educação. A maioria não compra nem lê jornais ou livros. A maioria não fala inglês, mas também não fala um português “bonito”. A maioria não come comida de qualidade (muitos sequer conseguem comer o suficiente). A maioria não escuta música de qualidade, não assiste a filmes de qualidade. A maioria tem pouco gosto pelo trabalho e, muitas vezes, um temperamento imoral e desleal. A maioria é uma massa ignara que possui o direito de votar e arrasta consigo o destino daqueles que são melhores do que ela em valor e sofisticação. A razão do problema está descoberta: são culpados os políticos, pela sua cupidez e egoísmo, e a maioria dos eleitores, os pobres, pela sua ignorância e rudeza.

Este diagnóstico, mesmo quando não formulado, assim, claramente, passa pela cabeça de grande parte daqueles que tiveram oportunidade de aprender a ler e escrever razoavelmente, os notáveis que ocupam o espaço apertado de uma minoria que tem condições de desfrutar das maravilhas do mundo contemporâneo e a base, imediatamente inferior, que vive a delirar com a possibilidade fazer parte desta elite. Aqueles que estão devidamente paramentados para a disputa darwinista pela sobrevivência, tão própria da atual sociedade capitalista. Os fortes, que administram empresas e instituições, detentores de posições de prestígio, líderes e exemplo para as suas comunidades; ou os aspirantes que de longe ambicionam os lugares dos que estão sobre as suas cabeças. Enfim, falo daqueles que, ao contrário das massas, tiveram um maior acesso à educação ou a uma melhor condição econômica. Aqueles que, por esforço próprio ou por auxílio de outrem, possuem condições de ler jornais e livros, aqueles que, no seu entendimento próprio, sabem como são as coisas, são instruídos. Pessoas que, normalmente, vêem na ignorância do povo a razão do atraso. Em suma, aqueles que sabem escolher bem os seus representantes.

Poderíamos pensar que esta forma de interpretar os fatos seria de uso exclusivo das elites que dominam o cenário político e econômico atual, pois historicamente toda a casta ou classe social detentora do poder sempre engendrou seus mecanismos para manter o status quo vigente. Porém, se tal visão ficasse restrita a um grupo reduzido, perderia a sua eficácia. Na prática, compartilham da mesma opinião uma significativa proporção daqueles que compõem a chamada classe média e que são considerados como pessoas com opinião própria e espírito crítico. Stuart Mill considera que todos os homens necessitam de uma justificativa moral para os seus atos e qual a melhor justificativa que dizer que a desgraça dos desgraçados é culpa deles mesmos.

Rosseau escreveu certa vez que os ricos consolam-se do mal que fazem aos pobres, acreditando que estes são suficientemente estúpidos para não sentirem nada. Palavras tão fortes quanto verdadeiras. É uma desculpa covarde justificar a própria omissão e indiferença, afirmando que a ignorância dos que são vilipendiados justifica toda a forma de exploração a que são submetidos.

Muitas vezes, as massas concederam generosas oportunidades à opressão e à infâmia, como bem atesta a história e não seria motivo de grande espanto se isto tornasse a acontecer, embora nunca tivessem feito agido sozinhas ou em proveito próprio. Porém, ao meu ver, é uma grande hipocrisia tributar ao nosso povo (porque os “melhores” não se julgam “povo”), de forma única e exclusiva, a carga de misérias que o tem afligido. Fazer isto significa pôr de lado o fato de que as elites de nosso país padecem, também, de uma ignorância sistemática, mais culpável, mais criminosa, pois uma coisa é ter um discernimento falho quando faltaram todas as oportunidades privilegiadas de aprendizado, outra é padecer do mesmo mal, onde, mesmo quando houve sacrifício, foi possível avançar mais.

Celebrizamos em nosso país a arte de fomentar as distorções mais absurdas, como a corrupção, a ostentação provinciana e o desperdício, cultivados na vizinhança da pobreza, da fome, das necessidades básicas não satisfeitas. Diante disso, como estranhar o fato de que os mais aquinhoados, aqueles que se consideram melhores e mais aptos para julgar, sejam tão incapazes para fazer uma interpretação suficientemente ampla e esclarecida da realidade? Podemos chamar de esclarecido alguém cuja interpretação da realidade é marcada pelo preconceito e a estreiteza, senão por um egoísmo e indiferença quase que fascistas? Por vezes tenho a impressão de que os brasileiros possuem uma aversão à democracia, pela forma como deploram as discussões, os consensos e a multiplicidade de pontos de vistas. Vivem a sonhar com a figura idealizada do herói que virá salvar a nação de sua decadência e elevá-la ao patamar de glória que faz jus por um desígnio divino, deixando de ser a eterna promessa nunca realizada. O que habita neste delírio coletivo é o desejo não tão secreto de encontrar um bom caudilho. Quem sabe, um ditador esclarecido, alheios à própria contradição implícita de tal alegoria. Escravos à procura de um senhor, porque visões unívocas dão sempre menos trabalho.

Assusta-me menos a propalada ignorância e culpabilidade do povo na decisão dos rumos de nosso país que a ignorância e culpabilidade da elite, dos “esclarecidos”. Enquanto os primeiros já vivem com a pecha de ralé, estes últimos acreditam terem suficiente conhecimento e discernimento para fazer boas escolhas, quando, em geral, todo o seu exercício político resume-se a duas coisas: periodicamente, a cada pleito, apertar alguns botões e lamuriar-se o resto do tempo por tudo que está errado. Nutrem-se diariamente com as informações distorcidas e fragmentárias produzidas por veículos de comunicação mal intencionados e comprometidos com a ordem das coisas, estudam para conseguir um diploma que faculte consumir a sua parte do saque, passando ao largo da educação e da cultura, propriamente ditas.

Acima de tudo, antes de falar da ignorância das massas e de como elas não sabem escolher os seus candidatos, tenhamos todos nós um minuto de lucidez para assumir que somos politicamente omissos e preguiçosos, que, no fundo, sabemos muito pouco sobre o que acontece de fato e, daquilo que sabemos, temos uma compreensão pobre e superficial. Antes de refugiar-nos no dogma da ignorância alheia, tomemos consciência daquela que nos pertence e que, insistentemente, não quer nos abandonar. Isto, por si só, já seria um grande avanço, porque é praticamente impossível resolver um problema se não reconhecermos que ele existe. Não nos esqueçamos que, enquanto estamos tomados pelo torpor, há interesses que ignoramos sendo muito bem defendidos, diariamente, nas casas onde as decisões que influenciam as nossas vidas são tomadas. O espaço aberto e sem dono sempre é o mais fácil de ser ocupado.

21 de jul. de 2006

Eles empre sabem

Dia 30 de junho de 2006, 16 horas no horário de Brasília. Começa a rolar a bola e a seleção brasileira, um dos nossos únicos orgulhos nacionais, diz que vai buscar, contra a França, a revanche pela derrota na final da Copa do Mundo de 1998. O sonho brasileiro durou uns 10 minutos, dali em diante seguiu-se o nervosismo, a aflição e a esperança de um milagre que nunca viria, tudo para esconder de nós mesmos o que já sabíamos: não havia como aquele time ganhar. Mas se o destino, por teimosia ou mero capricho, lhe concedesse a vitória, com certeza não a mereceria.
Como futebol, no Brasil, é uma forma de religião, onde cada time é uma espécie de seita e a Copa do Mundo um ato ecumênico, perder é motivo para todo o tipo de ruptura. Se perder já é uma coisa ruim, imagine perder parecendo que cada jogador tinha tomado uma caixa de Prozac? Crise séria... A culpa é do treinador, é dos jogadores, do coordenador técnico, do presidente da CBF, da Nike, da CIA, do efeito estufa, dos Illuminati, do Lex Luthor e sabe-se lá de quem mais. Não interessa, alguém é culpado e tem que pagar, nem que não se saiba exatamente como.
Afora toda a especulação e toda a imaginação envolvida em questão tão movida pela paixão, seria absurdo dizer que o grupo que construiu com tanto esmero um belo exemplo de fiasco não possuía um líder ou, pelo menos, um encarregado. Vozes que se deliciam com teorias conspiratórias dirão que este encarregado era um fantoche na mão de interesses escusos. Se for assim, o tal fantoche recebe um bom salário justamente para levar a culpa quando as coisas dão errado, é pago para ser o Judas que alimentará o fogo do final da festa. De uma forma ou de outra, ele era o responsável e é a ele que devemos pedir explicações, falo do técnico.
Dizem que, no Brasil, quando a coisa vai mal é sempre o técnico que paga o pato. Mas quem iremos culpar, senão aquele que escolhe a comissão técnica, convoca os jogadores, escolhe os titulares, estabelece o esquema de jogo, comanda os treinamentos, diz quem entra e quem sai, qual é o horário de trabalho e quando é dia de folga? Há muitos chefes que adoram impor a sua vontade aos outros, brincar com a autoridade, ser “o cara”, mas na hora que o navio está afundando, quase todos se disfarçam de marinheiro para não ter que afundar junto. Portanto não espanta que mais um “responsável” esteja usando uma saída dos fundos para fugir à turba, prática comum há milênios. O que espanta é que, mesmo em pleno século XXI, há os acólitos que querem proteger um partido que não é seu. Então ouvimos “conhecedores” do esporte nacional dizendo que o tal técnico é uma pessoa inteligente, experiente e competente, deve ter havido alguma coisa, não é possível que ele não tenha percebido o erro.
Bom... Primeiramente, pessoas inteligentes também erram e isto não é demérito. Arrogância, pretensão e descaso podem ser considerados deméritos, mas não o erro em si. A questão mais interessante aqui vai além do próprio universo futebolístico e mostra-se como projeção de um comportamento comum. O problema é que nós acreditamos que “eles” sempre sabem. Sabem o quê? Sabem o que estão fazendo.
Quando vemos um país como o nosso, com tanta corrupção, com tanta violência e tanta desigualdade, olhamos ao redor e pensamos que o nosso supremo mandatário não resolve os problemas porque tem má-fé, é um crápula, um corrupto, há interesses escusos, há grupos dominantes que controlam a sociedade e outras coisas do gênero. Sinceramente, penso que até deve haver tudo isso ao mesmo tempo, só que nunca consideramos o que deveria ser considerado em primeiro lugar: talvez ele não saiba o que esteja fazendo. Sempre especulamos inúmeras teorias, menos aquela na qual os que comandam são ineptos, incapazes e tão perplexos quanto nós que olhamos de longe e não entendemos nada. Há algo mais comum que o ser humano produzir uma série de atitudes idiotas?
Os que seguem olham de baixo os que são seguidos – sejam os políticos, as celebridades, os empresários, aqueles que parecem emanar uma aura de poder e auto-suficiência – e sempre pensam que eles sabem o que estão fazendo. Pensamento ridículo este, posto que quase nunca as pessoas sabem o que estão fazendo. Ainda mais quando extrapolam e não são mais somente responsáveis pelos seus anseios, mas passam a assumir o das outras pessoas.
O racionalismo iluminista conduziu a humanidade por um caminho onde passamos a acreditar numa infinita e crescente capacidade do homem para dominar a realidade. Paralelo a isto, o desdobramento do desenvolvimento social, econômico e do conhecimento sobre uma matriz influenciada por esta ótica do esclarecimento, quiçá plasmada sobre a influência do arquétipo de herói que, segundo Jung, habita a estruturação do psiquismo humano, produziu uma cepa de soberba embebida em individualismo. Em outras palavras, criamos o ideal do homem capaz, empreendedor, que sabe e resolve. Acreditamos que esta figura mítica surgirá na incerteza de tempos escuros e trará as soluções, resolverá os problemas, colocará ordem nas coisas. Mas não precisamos pensar em situações de grande perigo e comoção para conceber a figura solitária do herói, cada pequeno universo possui os seus problemas, contradições e, por que não dizer, heróis. O ponto principal é o fato de acreditarmos na idéia de pessoas que, individualmente, podem resolver situações que não dizem respeito somente a elas. Então, pensamos que aqueles que possuem mais poder do que nós, possuem também maior discernimento, maior capacidade para compreender a dimensão dos problemas que afligem a todos, para elaborar soluções e estabelecer uma ordem idealizada, onde na verdade cada qual tem seu sonho e somente a ansiedade é compartilhada.
O perigo reside no fato de que algumas pessoas passam a acreditar nesta fábula e julgam-se realmente superiores aos demais. Afinal de contas eles não são os heróis? Capazes de grandes façanhas e dotados de habilidades invulgares, fazem da sua imagem projetada o seu melhor amigo e trocam os espelhos por quadros devidamente retocados.
O grau de complexidade atingido pelas sociedades contemporâneas já deveria ter nos ensinado que, embora muitos possam destacar-se em diversas atividades, pouco podem as pessoas atuando de forma isolada. Mesmo o craque no futebol não resolve sozinho a parada se não tiver auxílio dos outros dez. Ele pode ser o diferencial, mas só é diferencial em um bom grupo, não sozinho.
Talvez possam me julgar um tanto pessimista, um tanto descrente, só que, na minha opinião, “eles” nem sempre sabem o que estão fazendo.

2 de jul. de 2006

Lugar que não existe

”Não confio em utopias. O comunismo é utópico, ao dizer que pode haver igualitarismo e riqueza ao mesmo tempo. As pessoas não trabalham com entusiasmo para aumentar o bem-estar alheio.” - Victoria Curzon Price, presidente da Mont Pelerin Society

Thomas More perdeu a cabeça. Não, ele não perdeu o juízo, literalmente perdeu a cabeça. Coube-lhe a triste sina de servir a um monarca demasiadamente caprichoso.
Freqüentemente, aqueles que, seja por artes do acaso ou por mérito próprio, desfrutam de uma posição que lhes concede poder sobre outras pessoas, vivem em uma espécie de realidade alternativa. Ocupam-se exageradamente com seus delirantes caprichos. Estes caprichos não são estáticos, inertes. Ao contrário, adquirem vida e corpo, podendo atingir envergadura suficiente para consumir os incautos que lhes deram azo.
Não me compete dizer se Henrique VIII era desta cepa, mas creio não estar sendo demasiado rigoroso ao ver nele um exemplo típico de déspota sanguinário. Diz-se que tal rei tinha a fixação pela idéia de gerar um herdeiro do sexo masculino. As contingências encarregaram-se de mostrar que seu poder não era tanto, pois apesar de não poupar cabeças para atingir tal objetivo, jamais teve um filho homem.
Casado com a rainha Catarina, Henrique VIII enamorou-se da jovem Ana Bolena. Mistura-se realeza, casamento, paixão, falta de escrúpulo e o ávido desejo por um sucessor varão e teremos um cenário bastante promissor.
O rei decide “desfazer” seu casamento para casar-se com a “outra”. O papa torce o nariz e resolve dizer que, pelo menos desta vez, seria bom que os poderosos seguissem algumas regras. O rei quer. A igreja não cede. O povo é crente. Como resolver este impasse? Muito simples, cria-se a própria igreja, de modo que a fé não fique mais atrapalhando as “questões de estado”.
Tudo resolvido? Quase... Um certo chanceler, conhecido por Sir Thomas, soldadinho do passo certo, acredita que este arranjo é errado e imoral. Tal figura já atraía alguma atenção por suas excentricidades. Havia escrito um livro, história fictícia onde criticava a propriedade e via virtude no trabalho. Alguns consideravam aquilo uma piada de mau gosto. Outros tentavam convencer de que não era brincadeira, o cara estava falando sério.
Diante do impasse, o tal Thomas More não faz muito alarde, apenas insiste teimosamente em não dar a sua benção. Afinal de contas, impedir é uma coisa, não aprovar é outra. Acontece que para o rei não bastava, ele algo mais sólido, o juramento de lealdade. Por mais estranho que possa parecer ao nosso tempo, vontade forte e determinação não são prerrogativas únicas de quem detém o poder, embora para estes seja sempre mais fácil praticar a teimosia. Num confronto onde um entrava com o machado e o outro com o pescoço, o desfecho da situação era óbvio e inevitável.
A história registra que Thomas More, como católico convicto, não aceitou o divórcio forçado de Henrique VIII, muito menos toda a situação que o envolveu. Como humanista que era, nos faz suspeitar que talvez a questão não estivesse restrita simplesmente à fidelidade a Roma, mas quem vai saber.
Ao contrário do que se possa pensar, não foi a morte como um mártir e a posterior santificação que lhe garantiram um lugar na história, mas o seu livro A Utopia. Obra de ficção que narra a existência da ilha chamada Utopia e de sua organização social. Através da descrição de uma sociedade imaginária, é tecida a crítica dos costumes, dos excessos dos governantes, assim como do parasitismo dos mais favorecidos, da vaidade, do orgulho e da puerilidade.
Desde então, o termo utopia passou a designar toda a forma de sociedade ideal, onde haveria paz, harmonia e felicidade entre os homens. Como isso não é algo que seja conhecido (muitos acreditam ser impossível), utopia ganhou os significados de aquilo que é somente imaginário, inalcançável, quimera, ilusão. Nada mais natural, visto que utopia , em grego, significa “não lugar” ou “lugar que não existe”.
Hoje, a palavra utopia não perdeu estes sentidos, apenas acrescentou a eles o caráter pejorativo. Este desencanto não é pela palavra, ele é mais amplo, mais abrangente. Engloba o mundo, a sociedade, o cotidiano e, quando há coragem suficiente, o desencanto consigo mesmo. Creio que sempre terei a dúvida se o chamado realismo, encarado como obsessão por aquilo que é considerado concreto e tangível, é expressão de uma personalidade suficientemente forte para abrir mão de suas ilusões em prol de atingir a verdade das coisas ou apenas o ato covarde de quem abdica de pensar o melhor por temer a frustração e o desapontamento.
Não vejo motivos para considerar o desencanto como um fenômeno injustificado, entretanto transformá-lo em atitude prática ou uma propedêutica para qualquer assunto é assumir a impotência do homem diante de sua humanidade. Podemos, de forma coerente, não acreditar em possibilidades ditas utópicas, entendendo este acreditar como uma fé cega e incondicional àquilo que é somente idealizado. Agora, se entendermos este acreditar como aceitar novas possibilidades e, eventualmente, apostar nelas, então esta ausência de confiança passa a ser inércia, omissão e pequenez. Pouco alçado como sou, pelo parco entendimento que tenho das coisas, só consigo imaginar que a maior das utopias é acreditar que seja possível conciliar o bem de todos com a ganância de cada um.

27 de fev. de 2006

Deuses, Heróis... e Ídolos

Dizemos, normalmente, com ares de grande sabedoria, que o homem primitivo, por não conhecer e compreender a forma segundo a qual se davam os fenômenos naturais, transformou-os em deuses.
Afirmar simplesmente que, na ausência do entendimento, sobrevém uma atitude tida como obscurantista creio que é uma mostra de propensão às explicações simples e incompletas para substituir a ignorância, ou seja, algo do mesmo tipo da solução que imaginamos que os primitivos tenham desenvolvido para explicar as chuvas.
Não julgo de todo improvável que culturas ancestrais tenham estabelecido com a natureza uma relação religiosa, mas reduzir a questão da forma como usualmente acontece é trocar o silêncio por algo que não lhe é substancialmente superior. Inclusive porque a própria religiosidade é um assunto complexo, sendo tratado de forma simplória por aqueles que preferem negar o que não entendem.
Mais interessante e esclarecedor aqui é tentar compreender o que, necessariamente, poderia levar o ser humano, que vivia continuamente a confrontação com a sobrevivência, a criar interpretações calcadas em elementos transcendentes para o seu cotidiano. Da mesma maneira que a gênese dos deuses, ao meu ver, surge apenas como uma hipótese, aprofundar o entendimento do desdobramento existencial aqui envolvido nada mais é do que um exercício de imaginação. Por isso tento imaginar o sentimento que mobilizava aquele que, diante dos fenômenos que o cercavam, buscava acima de tudo continuar existindo.
Se formos considerar a pirâmide das necessidades de Maslow, podemos notar que as necessidades básicas do ser humano, tanto quanto essenciais, são poucas e, aparentemente, simples: comida, água e abrigo. Na aurora da humanidade, a batalha cotidiana era justamente tendo em vista saciar estas necessidades, pelo fato de nunca estarem garantidas.
Numa situação assim, a vida humana mantém-se em uma condição delicada e instável. As ameaças são muitas e originam-se de diversos pontos, sendo que nenhum destes é controlado. A tensão contínua de manutenção da vida traz consigo a noção de impotência e não está descartada possibilidade de que esta seja superada pela crença em alguma força que possa sobrepor-se a este sentimento, exercendo sobre os elementos ameaçadores um controle maior e mais efetivo. Não identificando em nenhuma entidade tangível a potência ideal, ela a passa a ser buscada em algo que não é percebido de forma direta e, daí, a migração para o sentido de transcendência. Transcendência entendida simples e objetivamente como aquilo que transcende a percepção direta, projetando-se em algo que pode ser somente intuído ou imaginado.
Com o passar dos séculos, as diversas culturas humanas buscaram aperfeiçoar-se na arte de garantir comida, água e abrigo, ao mesmo tempo em que buscavam impor-se diante da natureza. Sabemos, porém, que as necessidades possuem uma cadeia de desenvolvimento, progredindo com relativa sofisticação. Portanto não poderíamos descartar a hipótese de que a evolução de nossas necessidades trouxesse consigo a alteração das concepções do divino.
Seria precipitado ver nas figuras dos deuses e heróis presentes na mitologia grega a projeção dos anseios de um povo? Hércules e a sua força não representariam a relatividade da força humana, diante da grandeza do mundo? No próprio mito de Prometeu, conta-se que seu irmão Epimeteu, encarregado de distribuir os dons entre os animais, distribuiu todos, não sobrando nenhum para o homem que ficou por último, não sendo, por isso, nem o mais veloz ou o mais forte dos seres. Não está aqui implícita sensação de impotência humana? Os deuses gregos, por sua vez, não eram muito diferentes dos homens. Ficavam irados, coléricos ou alegres. Tinham ciúme, paixão, volúpia, cobiça, luxúria e inveja. Não eram muito melhores do que os homens, embora valorizassem a virtude. O que os tornava deuses, então? Acima de tudo, eram imortais. Além disso, possuíam dons superiores que lhes permitiam conceder aos humanos dons e condições para suplantarem eventuais limitações comuns à maioria da espécie. Não vemos aqui a impotência humana refletida na imagem dos deuses? Curiosamente, não incomodava aos gregos que seus deuses tivessem algumas das marcas da imperfeição humana, suportavam as fraquezas de caráter, mas não a falta de poder.
Passados tantos séculos e tantas transformações, não creio que tenha havido modificações tão substancias acerca do nosso comportamento e das nossas predisposições. Os mais apressados diriam que é óbvia a simples substituição das figuras dos deuses e a conseqüente manutenção das crenças, sempre com roupagens diferentes. Sim e não.
Pressupomos, de forma genérica, que aqueles cultos foram substituídos pelas grandes religiões atuais, tais como o cristianismo, o judaísmo, o islamismo ou o budismo. O que não percebemos de maneira direta é que, mais do que as religiões instituídas, ocupa um lugar destacado na moderna mitologia o culto das personalidades. Com isso quero me referir a atores, músicos, políticos, esportistas e celebridades em geral.
As religiões institucionalizadas possuem rituais, símbolos, organização e estruturas que permitem com que sejam identificadas facilmente. O mesmo não acontece com o culto informal dos “ídolos” contemporâneos e talvez este seja o fator que faz com que este fenômeno não tenha suficiente atenção e quando o consideramos é como algo pequeno, despido de qualquer importância.
Se fôssemos atribuir a mesma linha de pensamento adotada antes, associando o sentimento de impotência com a mitificação e o culto, poderíamos abrir caminhos interessantes para novos questionamentos.
O culto da celebridade possui meios próprios para a sua criação, desenvolvimento e manutenção e acredito que o mais representativo destes meios é aquilo que denominamos mídia. Os diversos meios de comunicação, juntamente com a participação dos grupos sociais, acaba por transformar em domínio público a singularidade de uma existência individual. Entretanto, esta trajetória individual, na maioria dos casos das figuras cultuadas, é habilidosamente desbastada de certos elementos aparentemente desagradáveis, sendo que mesmo estes, quando aqui apresentados, adquirem conotações distintas das usuais.
Precisamos sempre entender que o apelo de sobrevivência é contínua, algo que não há como ser apagado ou negligenciado. É um impulso puro e indefinível, muitas vezes sequer pressentido, sendo acobertado por uma série de significados que engendramos para justificar os nossos atos. Em existindo este impulso, pela própria característica de fluxo e movimento que lhe é próprio a sua natureza, não possui uma forma ou um sentido definido pela nossa consciência, manifestando-se pelas formas como interpretamos e vivenciamos a nossa existência.
Se em épocas remotas a ameaça manifestava-se através dos animais, das intempéries e da dificuldade em obter alimento e água, atualmente as pessoas sentem-se ameaçadas por outros fatores. São as contas, o emprego, a violência urbana e os desejos não satisfeitos. As buscas por ascensão e aceitação social, por amor, sucesso e realização profissional. Os dilemas éticos, o medo, a angústia e a ansiedade. Elementos tão comuns ao cotidiano de todos nós. É neste cenário, então, que o ídolo, a atual reencarnação dos deuses e heróis míticos, aparece como aquele acima dos problemas do homem comum.
A imagem construída e cultuada nega a miríade de nuances que caracteriza a particularidade e a singularidade da vida de cada ser humano. O ídolo é uma figura mais simples, menos caleidoscópica e multidimensionada, figura paradoxal, porque menos intensa em sua profundidade interior, ao mesmo tempo em que de ampla intensidade na sua dimensão exterior e na forma como afeta os outros. Um personagem, uma criação. Ídolo cultuado justamente porque aparenta não padecer dos males que afetam os outros. O ídolo não paga aluguel. Não conta o dinheiro para ir ao supermercado, ao restaurante ou ao cinema. Ele não é rejeitado amorosamente, não é ignorado ou tratado com indiferença. Ele é um sucesso, uma referência, um orgulho para a sua família. Todos tratam-no com deferência, respeito e devoção. Em suma, aos nossos olhos ele não é impotente diante da vida.
Se apelarmos ao nosso bom senso, perceberemos que, além da alegoria da nossa impotência, o ídolo é um ser humano e, ao seu modo, traz consigo toda a amplitude existencial que esta condição acarreta. O que é espantosamente normal na nossa forma de encarar a vida é que acreditamos que as insatisfações tem como razão específica sempre algo que não possuímos. Talvez seja possível que aquilo que mais nos falta não sejam os elementos cobiçados em imagens difusas e irreais, mas apenas ousadia para o diferente e humildade para aceitar que nada é mais natural na vida do que as dificuldades e os reveses, ou vocês acham que foi fácil sair do útero, aprender a ver, a ouvir, a falar e a andar?

13 de fev. de 2006

Coisas Concretas

Definir o concreto, à primeira vista, é uma tarefa fácil. Normalmente é aquilo que identificamos como tangível e, a partir disso, transforma-se na personificação do real. Seguindo esta linha, encontramos algo como um fundamento da percepção, ou seja, a percepção verdadeira fundamentar-se-ia no concreto, pela sua característica de tangibilidade, assim, real e existente é o que pode ser “tocado”.
O concreto não é algo em si, mas uma condição que pode ser constatada de maneira específica. A noção mais acessível que podemos observar aqui nasce da experiência que possuímos inerente à prática de afetarmos e sermos afetados pelos objetos que estão ao nosso redor. Objetos considerados simples, individuais, localizados no tempo e no espaço pela sua tangibilidade. Dizemos que a cadeira, assim como um prato, um espelho ou um lápis, é concreta porque constato a sua realidade através dos sentidos, aceitando como pressuposto a validade deste tipo de abertura.
Entretanto, não podemos reduzir esta questão ao simples constatar dos objetos com os quais dividimos o mundo. Há situações em que extraímos o real do imaginário. Se tomarmos um livro e afirmarmos que a sua realidade está na percepção que os nossos sentidos possuem a seu respeito, uma mesma obra editada em diferentes formatos de encadernação, dimensões e papel, nunca poderia ser considerada como diferentes formatos de uma mesma coisa, mas apenas diferentes coisas. Percebemos aqui que há uma realidade imediata no livro enquanto objeto, mas há uma outra, de caráter mais sutil, que revela a passagem do que caracterizamos como abstrato para o considerado concreto. Se o livro parece um exemplo demasiadamente vaporoso, pelo fato de que, para muitas pessoas, ele apenas representa uma resma de papel, cabe aqui dizer que algumas obras de caráter mais facilmente digeríveis também passaram por esta transição, como é o caso dos edifícios, dos aviões, dos automóveis e dos computadores. Houve um momento em que tais objetos não poderiam ser caracterizados como concretos, hoje ninguém ousaria afirmar que eles não o são.
Nesta altura, podemos notar que, mesmo aquele que for o mais apegado às suas percepções sensíveis como índice de realidade, terá que aceitar que não só é possível uma travessia entre o simplesmente imaginado para o substancialmente concreto, como ela é exuberantemente comum.
Ao falarmos do sensível, a idéia que vem à mente é daquilo que pode ser visto, ouvido e tocado. O espectro dos sentidos é mais amplo do que estas sensações, porém, mesmo considerando todas as probabilidades sensoriais, temos que levar em conta outros elementos componentes das nossas experiências. David Hume, no seu clássico “Investigação sobre o Entendimento Humano”, já colocava um conceito interessante, também utilizado por Bergson e Deleuze, a intensidade.
Este filósofo escocês, como bom empirista que era (talvez o maior de todos), dava um valor substancial às sensações. Muitos falariam da importância que os empiristas atribuíam aos sentidos. Aqui creio haver um certo descaminho, pois sensações e sentidos são duas coisas bastante distintas. Enquanto os sentidos são normalmente compreendidos como condições de possibilidade da experiência sensível, as sensações, a princípio, seriam já um fruto desta experiência, algo como uma conseqüência da abertura proporcionada pelos sentidos. Seria assim se tudo o que sentimos pudesse ser reduzido a percepções sensoriais, mas, por exemplo, a uma imagem atribuímos uma série de coisas, inclusive algumas que não estão nas coisas em si, mas em nós mesmos. É o caso das emoções.
Hume não ignorava as emoções, considerando-as tão vivas quando as imagens percebidas pelos olhos ou os sons percebidos pelos ouvidos. Ele fazia uma distinção entre idéias e impressões, considerando as primeiras como evocações das segundas. A impressão é o sentimento vívido, forte, aquele que ocorre no momento. A idéia é a lembrança, a imagem do que foi experienciado. No seu entendimento, qual era a diferença entre as duas? A intensidade.
Sabemos que, como dito acima, as sensações não se esgotam em uma simples reprodução do objeto. Ao contemplarmos uma paisagem que consideramos bela, mais do que a reprodução da imagem em nossa mente, surge toda uma gama de sensações que conferem novas dimensões à experiência, tornando-a mais rica e densa, aumentando a sua intensidade. Então a simples reprodução dos objetos traz consigo uma indiferença e banalização do objeto, uma experiência de menor intensidade.
Postas as coisas desta forma, podemos perceber que a idéia do concreto em si, na sua perspectiva mais próxima do senso comum, traz consigo uma concepção pobre da experiência real, pois identificar o tangível como índice de realidade, é desprezar todas as possibilidades intrínsecas à percepção, próprias da existência humana, é também, por outra forma, o achatamento das experiências, através da negação das suas intensidades.
Embora hesitemos em aceitar, o concreto é o nosso suporte para construção da imagem do mundo que permite conduzirmos a vida dentro da órbita da utilidade, condição essencial para a sobrevivência da espécie, ele não é a realidade em si, é mais uma imagem que usamos como referencial. Isto em si não é problemático, senão necessário. O problema surge quando tomamos a imagem pela coisa e, a título de sermos realistas, insuflados pela insegurança de quem teme precipitar-se no vazio, construímos grossas amarras que não tem outro propósito senão diminuir o tamanho de nossa existência e tornas as nossas vidas pequenas, miseráveis, sem cores e nem brilho e isto parece ser bastante concreto.

7 de fev. de 2006

Insatisfeitos

Adão e Eva viviam mais ou menos o "felizes para sempre" quando o caldo entornou. Ao que tudo indica, não havia velhice, não havia doença, não havia preocupações ou sofrimento. Podemos, inclusive, imaginar que não havia privações.
Olhares contemporâneos podem fazer crer que o deslize do jovem casal possa ter se dado por surto de tédio. Assim como não havia os dissabores da existência humana, é possível que também não houvesse os seus prazeres. Quem sabe eles sentissem a falta dos automóveis, trânsito, telefones celulares, internet, roupas de grife, baladas, sexo inseguro e novela. Eram somente dois e todos sabem o que a convivência contínua entre duas pessoas pode fazer. Quer queiram ou não, as pessoas acabam por conhecer-se cada vez mais e isto é perigoso. Ou quem sabe os recém-criados espécimes, como figuras não suficientemente aperfeiçoadas, acabaram por encontrar uma das mais incisivas de suas imperfeições: a insatisfação congênita.
Como os adolescentes que vivem a procurar contrariedades na vida, é bem possível que estes nossos ancestrais tenham incorrido no erro de serem precipitados em seu julgamento. Há um dito popular que sentencia "a grama do vizinho é sempre mais verde". Neste caso, é a sabedoria popular afirmando que, além de termos dificuldade em dar valor ao que temos, vivemos procurando o que não temos e, se o que não temos é desgraça e sofrimento, então tratemos de achá-los. Foi isso o que fizeram aqueles que, segundo a Bíblia, eram os dois primeiros humanos existentes. Tanto quanto um precedente estatisticamente impressionante (naquele momento, 100% da população ocupou-se de, deliberadamente, ser expulsa do paraíso), esta situação traz consigo uma série de conotações simbólicas bastante expressivas.
É natural pressupor nesta altura que, se carregamos alguma maldição, ela não é o pecado original, mas uma tendência incômoda de estragar o que está indo bem e provocar a nossa própria desgraça. Todavia, um pensamento assim, além de pouco contribuir para o nosso alívio, revela mais um pendor pelo trágico e pela auto-piedade que a constatação de uma verdade indiscutível.
A insatisfação do homem diante de si mesmo e da sua vida revela o caráter dinâmico que é íntrínseco a sua natureza. O espírito humano não consegue furtar-se a esta compulsão pelo movimento. Entretanto, pensar que movimento e insatisfação constituem-se, sob esta perspectiva, como sinônimos ou componentes indissociáveis de um quadro inevitável é recorrer a uma perspectiva limitada para compreender a existência. Dizer que algo não existe porque não o conhecemos ou que seja impossível porque não conseguimos fazê-lo são distinções sutis que revelam a forma como reduzimos a nossa percepção, considerando esta como algo pressuposto, rígido e inalterável. Não acredito nisso. Podemos avançar em nosso discernimento e isto só é possível aceitando que, tanto quanto ele é limitado, é também propenso a um processo de evolução contínua.
Considerando as coisas desta forma, creio ser inadequado afirmar que a insatisfação seja própria do movimento natural do nosso espírito, porque, ao que tudo indica, é mais provável que ela seja própria do tipo de movimento que "imprimimos" ao nosso espírito. Sendo assim, já não interessa se Adão e Eva fizeram certo ou errado comendo da fruta da árvore do conhecimento do bem e do mal, mas, acima de tudo, se eles sabiam o que estavam fazendo. É curioso pensar que só teriam discernimento suficiente para avaliar o seu ato se antes tivessem comido a fruta que eles não deveriam ter comido. Então parece certo que não podemos culpá-los pelo seu desvio mais do que culpamos uma criança por uma desobediência a seus pais. Nós, por outro lado, infelizmente, não podemos dispor da mesma desculpa.

27 de jan. de 2006

Sobre Bonner e Homer

Temos que admitir, o ser humano é um contínuo paradoxo em trânsito. Se, enquanto espécie, oscilamos entre a genialidade e a bestialidade, o nobre e o vil, o santo e o profano; individualmente podemos oscilar entre gradações de amplitude menor, mas ainda, sob certo aspecto, opostas. Podemos ser cálidos ou explosivos, frios ou passionais, amorosos ou indiferentes, alternando disposições que, com grande freqüência, sequer conhecemos ou compreendemos. Desejamos sem saber porquê, queremos ora uma coisa, ora outra. É provável, porém, que a nossa maior contradição esteja em algo mais tangível, a saber, no incrível distanciamento que nutrimos entre o que somos e o que pensamos ser.
Em crônica publicada recentemente na revista Carta Capital, o sociólogo Laurindo Lalo Leal Filho narra a pitoresca visita de um grupo de professores à Rede Globo e, em especial, a oportunidade que estes tiveram de participar de uma reunião de pauta do Jornal Nacional. Muitos são os quitudes apresentados, porém vamos nos ater ao prato principal: a designação dada por William Bonner, editor-chefe do Jornal Nacional, para o seu telespectador padrão (entenda-se consumidor), Homer Simpson. Não pode ser chamada de leviana a terminologia empregada por este profissional que é uma referência no telejornalismo brasileiro (por mais que se torça o nariz, acreditem, ele é uma referência bastante significativa para entendermos muitas coisas em nosso país). Afinal de contas, o perfil que definiu o Homer brasileiro surgiu através de uma pesquisa, é uma informação "científica". Imagino esta como uma eventual resposta do renomado jornalista a uma inquirição direta sobre o assunto, embora esteja inclinado a acreditar que o mesmo possua uma noção bastante vaga do que venha a ser ciência.
Poucos de nós sabem ao certo o grau de influência que o Jornal Nacional exerce na formação da opinião do povo brasileiro, mesmo assim intuímos que esta seja gigantesca e é isto que nos deixa apreensivos e, até certo ponto, constrangidos quando tomamos conhecimento de algo do gênero daquilo que foi relatado. Alguns poderão, inclusive, sentirem-se tomados de indignação (a indignação eu dispenso, porque sei que ela faz mal ao estômago). Todos estes sentimentos são os elementos que dão a tônica do contato inicial, aquele que imediatamente sucede à percepção e constitui-se na primeira tentativa de interpretação do discurso exposto. Na seqüência deste movimento deveria sobrevir uma calma e lenta reflexão acerca do acontecido, de modo a conseguir discernir os elementos mais esquivos e obscuros, certamente encobertos pela nuvem do que aparece em primeiro plano. Infelizmente não é habitual que cheguemos a este estágio, fosse assim, não seríamos todos chamados de Homer Simpson, por mais simpático que nos pareça tal personagem.
Há fatos que, se forem minuciosamente analisados, podem mostrar-se como indícios significativos para facultar uma maior compreensão da realidade em que estamos inseridos (mesmo que esta realidade seja uma invenção mal-sucedida do ser humano) e penso que o fato em questão é um destes. Muitas são as perspectivas de análise que ele permite abrir, entretanto escolherei apenas uma, talvez a mais singela e menos importante: a percepção distorcida que temos em relação a nós mesmos.
À primeira vista, pode parecer que não haja uma conexão clara entre o fato citado e o tema escolhido. Existindo a conexão, procuremo-la, caso contrário, inventemo-la.
Se reunirmos 3 pessoas, na calada da noite, em uma sala parcamente iluminada, não seria incomum elas acharem por bem tratar como assunto a figura de um desafeto mútuo, aliás, como sempre digo, nada une mais as pessoas que um inimigo em comum. Assim como não seria algo espetacular se, referindo-se a esta pessoa, utilizassem adjetivos como conspirador, caluniador e maledicente. Qualquer um, com um mínimo de discernimento, pode perceber a ironia que é aplicar a outrem adjetivos que poderiam muito bem qualificar a atitude de quem adjetiva. Tanto quanto irônica, esta prática é incomodamente comum.
Pensemos que o ato de atribuir adjetivos de conotação negativa a outras pessoas, principalmente se estes poderiam ser aplicados igualmente a quem os aplica, demonstra uma atitude que envolve uma visão que se prolonga de si para fora, obscurecendo a visão de si para si. Não podemos ignorar que, assim como a percepção que temos do mundo, ou seja, das coisas externas a nós, é passível de equívocos, o mesmo acontece com a nossa percepção interna (percepção de si). Esta, freqüentemente, mistura-se com imagens que construímos a nosso respeito, sem que estas necessariamente possuam uma contrapartida real.
Quando julgamos depreciativamente alguém, trazemos implícita a noção de que estamos em condição de julgar. Questionar a condição de julgar, por si só, é um ato que inibe o julgamento conclusivo. Ao julgarmos outra pessoa, conscientemente ou não, efetuamos um movimento onde, ou simplesmente ignoramos a nós mesmos, excluindo-nos da equação, ou a nossa figura aparece como um referencial situado em posição de valor suficientemente privilegiado para submeter o que a circunda ao seu julgamento. A segunda opção parece ser a mais comum e, possivelmente, aquela presente no discernimento do Sr. Bonner.
O uso pejorativo do termo “Homer” para designar grande parte da população brasileira, como referência a sua eventual incapacidade intelectual generalizada, no meu entendimento, não é tão interessante como indicativo claro do preconceito que lhe acompanha. Creio que aqui se destaca o fato de que quem faz este julgamento pressupõe estar em uma condição privilegiada para julgar a capacidade dos outros.
Se eu fosse tomado pelo mesmo ímpeto arrogante de acreditar-me acima daquilo que designaríamos como inteligência mediana, poderia dizer que o Jornal Nacional é um telejornal de péssima qualidade e que, ao contrário do que se pensa, ele é assim não porque esta baixa qualidade seja intencional e tenha em vista atender à incapacidade intelectual de seus telespectadores, mas porque aqueles que são responsáveis por ele fazem o que sabem fazer, ou seja, um trabalho de péssima qualidade. Entretanto, evito fazer tal comentário, pois proceder desta maneira seria seguir o deplorável exemplo do Sr. Bonner, tão carente de elegância, inteligência e cultura.

Podendo escolher livremente, confesso que me agrada mais fazer parte da legião dos “Homers” ignorantes do que do restrito grupo dos “Bonners” esclarecidos. Pois a aparente ignorância daqueles, nestes é substituída por um aparente esclarecimento e qual a definição mais clara de ignorância que não saber que não sabe.