9 de jul. de 2007

O gato traiçoeiro

Dizem por aí que não há dúvida, esta é uma história real. Não me cabe dizer se ela é real ou não, somente contá-la.
Vivia uma moça quase que sozinha no seu apartamento. Digo quase que sozinha porque dividia o espaço com um grande gato cinzento. Não é por desconsideração ao gato que digo quase sozinha, é que se tratava de um bichano soturno e quieto. Toda vez que a moça tentava o diálogo, respondia com um olhar indiferente ou um leve ronronar. O mais interessante não era o silêncio, era a impressão de cálculo, de intenção, o que nutria na moça a esperança de ser compreendida. Enfim, vivia uma moça quase que sozinha no seu apartamento com um grande gato cinzento.
Ela não era a mais bonita das moças, assim como não era a mais feia. Acho sempre arriscado falar de beleza ou feiúra, visto que as pessoas não possuem um acordo fixo acerca deste assunto. Pelo que dizem e pelo que a minha imaginação aceita, estava mais para bonita do que para feia.
Como manda a coerência, para alguém que vivia “quase” sozinha, apesar de não ser feia, a moça não tinha namorado ou noivo e, até onde se sabia, não tinha qualquer interessado. Não é recomendável a um narrador de boa índole cometer indiscrições, entretanto a discrição, muitas vezes, é um luxo que rouba a quem conta uma história o prazer da narrativa, impedindo a exposição daqueles pequenos detalhes que são o essencial de qualquer relato. Portanto não julgo indiscrição dizer que a moça tinha alguns admiradores secretos, mesmo que pensasse não merecer a atenção de qualquer homem.
Antes que me esqueça, chamarei de Amanda a até agora protagonista (e digo até agora porque é possível que não seja protagonista até o final da história, considerando a dificuldade que sempre possuiu em ser protagonista até de sua própria vida), porque fica mais fácil usar um nome do que lhe chamar de “moça”, “ela” ou “a personagem” o tempo todo. Amanda parece-me um nome bonito e elegante, com a vantagem de preservar a identidade real da jovem solitária, poupando-lhe qualquer constrangimento.
Creio ter tomado demasiado tempo do leitor falando de Amanda. Os mais rigorosos, com certeza, entenderão que poucos foram os indícios fornecidos para que a conheçamos suficientemente bem, porém dizem que não há muita coisa a mais que possa ser acrescentada, a não ser que a moça, Amanda se preferirem, passava o dia a trabalhar e a noite a estudar, sendo que o seu apartamento era mais propriedade do grande gato cinzento do que sua.
A quem interessar possa, cabe dizer que a atenção que concedemos à Amanda em momento algum perturbou o “gato cinzento”. É fato conhecido que os gatos são criaturas furtivas, sutis, silenciosas, ... Este gato, em particular, talvez fosse mais ardiloso que os outros e o fato de nossa atenção estar centrada na doce e meiga Amanda (sei que não falei isto antes, mas a Amanda era uma moça doce e meiga), propiciava uma liberdade de movimentos que muito lhe agradava.
A real natureza deste gato singular talvez passasse desapercebida a todos nós, porque mesmo Amanda, que lhe tinha como melhor amigo, desconhecia-o completamente. O que sabemos sobre ele e contaremos a seguir só foi possível descobrir porque olhos muito atentos e mais ardilosos que o felino possibilitaram trazer a lume estes fatos. Os mais ciosos da veracidade do relato tentarão atestar a fidedignidade da fonte, indagando acerca de que olhos são estes que, mais furtivos e dissimulados que o mais furtivo e dissimulado dos gatos, conseguiram captar o que alguém jamais viu? Não tenho poder para inibir qualquer investigação, só posso dizer que devo preservar a fonte de qualquer possível retaliação, mantendo-a no anonimato.
Não há uma história uniforme, bem começada, bem desenvolvida e bem acabada. Sabemos de alguns fatos esparsos e é a estes que me atenho. Certa vez Amanda, ao entrar na sala de estar de seu apartamento, não percebeu que uma das bordas do tapete estava levantada e tropeçou, caindo próxima a uma mesa de centro com cantos muito agressivos. Do acidente restou-lhe algumas feridas superficiais no joelho. Naquela semana Amanda dividiu-se entre o azar que teve ao tropeçar e a sorte de não ter acontecido um mal maior. Ela nunca soube, mas foi o gato que, sutilmente, levantou a borda do tapete para que ela tropeçasse. Não era sua intenção, pelo menos naquele momento, provocar um acidente grave, todavia deve ser dito que o gato adorava divertir-se às custas da pobre moça.
Às vezes desligava o despertador para que Amanda chegasse atrasada ao trabalho. Às vezes entupia o vaso sanitário e as pias para ver o chão encharcado, mesmo detestando água. Às vezes tirava dinheiro de sua carteira e escondia. Às vezes deixava a porta da geladeira aberta. Quando ela estava ao telefone, desligava e ligava novamente o cabo para interromper a ligação. Quando ela estava tomando banho, desligava o disjuntor de energia para que a água ficasse fria. Quando ela estava passando roupa e se distraía, lá estava o gato aumentando a temperatura e torcendo para que ela queimasse algo na sua frente. Escondia os seus sapatos e roupas. Sumia com a correspondência. Bebia todo o leite e comia toda a carne e chocolate que houvesse (o gato adorava chocolate, coisa impressionante, pois há especialistas que garantem que os gatos não sentem o sabor doce).
O mais surpreendente nisto tudo era o fato de que, seja por estupidez da moça ou maestria do gato, ela jamais desconfiou. Quando acontecia algum acidente desagradável, olhava para o gato e ele emitia um baixo e quase imperceptível miado inocente, acompanhado de um olhar solidário. Amanda sempre se julgou uma pessoa de má sorte, para quem tudo dava errado. A presença do gato gerava algum conforto para sua solidão, pois via nele alguém de confiança, diante de um mundo de insegurança, traições e vilezas. Talvez a questão não fosse ter conhecimento das traquinices do gato, pois como Amanda poderia concebê-las em seu universo, onde o silêncio do animal de estimação era um claro sinal de cumplicidade? Como poderia imaginar que a sua passividade não era tão passiva assim e que, ao contrário, o grande gato cinzento estava empenhado em tornar a sua vida um inferno?
As razões do gato são desconhecidas. Não é possível afirmar se ele é naturalmente mau. Se tem uma antipatia pela moça, daquele tipo que alguns parentes têm entre si e que nada parece demover. Se tudo era pura galhofa ou, o mais provável, se era só tédio. Talvez o escape do tédio para Amanda fosse a autopiedade e o escape do gato fosse dar motivos para a autopiedade de Amanda, quem sabe.
Como acaba a história? Até onde sei, não acaba. Parece que ainda hoje Amanda continua sofrendo nas mãos, ou melhor nas patas, de seu gato. Deve ser reconhecido que o bichano manteve o seu padrão de qualidade com criatividade e dedicação, buscando sempre novas e eficientes maneiras de cumprir as suas tarefas. O que fica de lição disto tudo é apenas que devemos ficar atentos. Se entrarmos na casa de uma moça com uma expressão desafortunada, que não é feia e que mora apenas com um grande gato cinzento, não devemos tirar os olhos do gato, em momento algum.

15 de jun. de 2007

Sucesso

O português José Saramago foi o primeiro escritor de língua portuguesa a receber um premio Nobel de Literatura, em 1998. Segundo ele mesmo conta, no momento em que foi anunciado seu nome pela comissão do prêmio estava no aeroporto de Lisboa. Procurou um telefone público para falar com o seu editor e saber qual havia sido o resultado. Ao efetuar a ligação, ouviu de uma secretária o pedido para aguardar na linha. Neste mesmo instante seu nome foi chamado no sistema de som do aeroporto, havia uma chamada telefônica. Uma moça do balcão da Lufthansa estava com o fone na mão, esperando-o. A jovem não conseguiu conter a emoção e deixou escapar: ele fora agraciado. Ao saber da notícia, Saramago teria dito algo como "Prêmio de quê?".
O escritor explica que não considerava pouco o Prêmio Nobel, não era um gesto de soberba ou de desprezo. Era aquela lucidez incômoda que, às vezes, nos assalta. Tudo é tão pouco, justifica. Que representa o nosso sucesso, que representa todo o reconhecimento e poder dos homens, que representa um prêmio Nobel diante das estrelas, dos mundos, da vida, do universo...
Tenho para mim que a história de cada pessoa é singular, portanto é insólito pensar que uma vida possa ser mais singular que outra. Por outro lado, há histórias onde a vida parece clamar por atitudes, por aberturas, por espaço para se manifestar. Muitas vezes, as pessoas se esforçam para calar este chamado, pois os chamados da vida, quase sempre, incitam ao novo, ao incerto, ao risco. O mundo dos homens é rico em preceitos e proibições. O tabu dos tempos atuais é o fracasso, o erro e a fraqueza. Assim, é melhor calar vozes, mesmo que internas, que possam nos induzir ao "ridículo". Há pessoas que, ignorantes que são, ignoram os avisos daqueles que tem o "bom senso" e, ao invés de seguir por trilhas cansadas de tão pisadas, resolvem abrir seus próprios caminhos. É possível que José Saramago seja uma destas pessoas.
De origem humilde, o escritor, antes de ser escritor, aprendeu na escola técnica o ofício de serralheiro mecânico, vindo a trabalhar numa oficina de automóveis. Teve vários empregos (serralheiro, desenhista, funcionário da saúde e da previdência social) antes de publicar o seu primeiro romance, Terra do Pecado, aos 25 anos. Não sei se pode ser dito que este tenha sido o início de sua carreira literária, pois se passaram quase vinte anos até que viesse a publicar novamente. Neste período, entre outras funções, na imprensa, foi jornalista e crítico literário. Entretanto, é somente em 1975 (quando tinha 53 anos) que decide dedicar-se somente à escrita, após ser demitido do cargo de diretor-adjunto do jornal Diário de Notícias, passando a manter-se, durante algum tempo, com o trabalho de tradutor. Os críticos literários consideram que a produção literária de Saramago acentua-se visivelmente após os seus 55 anos de idade.
Os grandes escritores dominam a arte de escrever com profundidade. Escrever com profundidade não significa escrever um texto com ambigüidades que, aos incautos, parecem expressão de grande sabedoria, mas um texto com significados em camadas, permitindo que o leitor penetre-o muitas vezes e, em cada uma delas, possa encontrar novos conteúdos, dando vida à aparente aridez da letra morta que é posta sobre o papel. Saramago começa o seu discurso da entrega do prêmio com a seguinte frase: "O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever." Esta frase fazia referência ao seu avô, um camponês com o qual conviveu em sua infância e adolescência. Esta frase pode possuir uma série de significados, mas o que, ao meu ver, primeiramente emite é um alerta, um chamado à humildade.
Vivemos em um mundo de injustiças e de farsas. Pergunto-me se é por acaso que um dos maiores mestres da literatura contemporânea cita que é neto de analfabetos e fala disso não naquele sentido que nos acostumamos a ver nos filmes americanos, onde a origem humilde serve para que o personagem possa se gabar de ter atingido o sucesso, a realização do mito e do ideal do self made man. Não, o autor, o letrado, diante de uma platéia de luminares, quando os olhos do mundo estão sobre si, não presta o seu maior tributo a Virgílio, Dante, Cervantes, Goethe ou Shakespeare, presta-o a seu analfabeto avô, "o homem mais sábio que conheceu". Saramago, no mundo globalizado da pressa e do lucro, que produz doutores, intelectuais e artistas em escala industrial, resgata a dignidade de alguém tragado pelo tempo e esquecido pela sua "insignificância". Diante de tanta pompa e luxo, foi a presença onipotente da figura do camponês analfabeto que calou uma platéia para que se escutasse as lições que ensinou ao literato reconhecido.
Alguns dizem que só podemos falar da história de alguém quando ela está concluída. Considerando o pressuposto implícito a quase toda concepção histórica que é o de fatos dispostos em uma linha de tempo, tal argumento é válido. Porém, seja por licença poética ou por romantismo de alguns eruditos, a história passou a evocar, também, a multiplicidade simbólica que é própria da vida humana, contínua enquanto existente e persistente na língua, na memória e nos objetos, mesmo após a morte. E é na idéia de continuidade que, fazendo uma pausa na vida de Saramago e olhando-a em perspectiva, sabendo que esta casuística é imprópria e indigna da vida de qualquer um, pergunto: este escritor é um homem de sucesso? A obviedade da resposta inibiria que um leitor imprudente fizesse tal pergunta, mas não sei se posso inscrever o meu nome no rol dos prudentes e por isso a faço. Receber um prêmio que, por muitos, é considerado a maior dignidade que pode ser concedida a um escritor significa, à primeira vista, o coroamento de uma carreira de êxito, mas insisto: é Saramago um homem de sucesso?
Se cedo à pressão do senso comum e aceito que ele é um homem de sucesso, reconheço isto pelas suas obras. A suas principais obras vieram a lume após os seus 55 anos, então hoje posso dizer que ele possui sucesso, mas se fizesse esta análise quando ele possuía 50 anos, diria, então, que era um escritor fracassado? Qual o valor do Saramago de 30 anos?
Muitos dirão que a obra do escritor se deve ao seu gênio. Usar o termo gênio é muito cômodo, pois é como uma mágica que nos livra de ter que dar alguma explicação. Qual o valor do gênio quando o seu segundo romance não foi aceito para publicação? Qual o valor do gênio de Saramago quando foi demitido aos 53 anos? A nossa cultura considera normal pensar que uma pessoa com mais de 50 anos não tem com que contribuir, ao mesmo tempo em que não esperamos que ela produza algo de significativo para os outros e, talvez, para si mesma.
Normalmente somos tão tomados pelas convenções sociais que se torna difícil perceber quantas convenções Saramago burlou. Da origem humilde e sem formação para o reconhecimento mundial como um dos maiores mestres da escrita de nosso tempo, de uma carreira mediana e comum para o sucesso após uma idade que se considera reservada à aposentadoria. Este caminho não deixa incólume a ninguém e se concede algum poder é o de reconhecer o vazio das convenções e a certeza de que não se deve nada a elas.
Não somente com sua obra, mas com seu exemplo, José Saramago resgata a dignidade dos excluídos. Dos excluídos pela pobreza, dos excluídos pela ignorância, dos excluídos pela idade. Dos excluídos pela violência, seja a dos ricos, dos perversos ou dos indiferentes. Diante deste exemplo, pergunto-me o que seria, então, o sucesso, pois as concepções usuais estremecem quando confrontadas com um exame mais atento e com a realidade da vida. Creio que uma possível resposta poderia começar a partir dos dizeres do ilustre escritor português: "O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever".

1 de jun. de 2007

Sonho e realidade

Falamos em tom de troça da velha pergunta que se fazia às crianças: "o que você quer ser quando crescer?". O cômico, quase sempre, procede do ato de apresentar a indagação àqueles que, pelo menos à primeira vista, já não possuem mais o que crescer. O tempo passou, o corpo mudou, o amanhã é "hoje" ou, pior, já virou "ontem". Perguntar às crianças, por sua vez, significa penetrar na leveza própria do mundo infantil, permitir o vislumbrar de um horizonte que se alarga indefinidamente, como se fosse só questão de vontade fazer de todo o sonho uma realidade. Nada destoa mais deste frescor da alma do que o mundo claustrofóbico, limitado e cinzento, que é onde, em geral, vivem os adultos.
O sonho representa um vôo esperançado para frente, para um porvir melhor. Todos nós, ao longo de nossas vidas, vivemos uma infinidade de experiências e, principalmente durante a infância, muitas destas deixam marcas indeléveis em nossas histórias e personalidades. Quando crianças, idealizamos um paraíso próprio, um mundo aparte, representado por uma profissão, uma casa, uma família ou uma carreira, às vezes apenas alguns objetos. Fragmentos da imaginação depositados no caprichoso e indiferente terreno daquilo que virá a ser. Estas projeções trazem consigo a influência direta do que foi vivido e da forma como isto foi assimilado. A aspiração por uma carreira de sucesso, por exemplo, pode encontrar o seu nascedouro na busca pela compensação de uma humilhação sofrida na infância. Então, os sonhos motivadores dos nossos grandes projetos acabam por ocupar a centralidade do universo psíquico. Alguns se sentem tão acalentados por estes sonhos que os guardam ao longo de toda a vida, como o último bastião em defesa da inocência perdida, perseguindo-os obstinadamente, por vezes deformando-os e adequando-os à crueza do mundo "real", preferindo condená-los à deturpação antes que entregá-los ao abandono. Não se trata da superação da realidade passada, com a devida reelaboração das suas nuances mais perturbadoras, é a tentativa de retorno, onde se busca não somente o resgate, mas a oportunidade de reviver o momento pretérito de uma forma idealizada, sonho que, pela sua impossibilidade, é sempre condenado à frustração. Muitos de nós, quando concebemos o porvir como superação do passado ou do presente, não percebemos que, mais do que ansiar por um futuro melhor, trazemos conosco o desejo inconsciente de reviver o passado de outra forma e, realmente, muitas de nossas atitudes podem tender para isso.
O ser humano não é uma coisa, antes disso é um movimento e, na qualidade de seres indefinidamente cambiantes, somos confrontados por uma dinâmica inefável e intransigente. Podemos insistir em não querer perceber esta realidade de contínua transformação, mas não podemos interrompê-la ou evitá-la. Assim como o organismo modifica-se continuamente, também se alteram os estados psíquicos, a interioridade. Nossas mais elevadas aspirações não fogem a este processo, embora, ao mesmo tempo, se afigurem como manifestação do nosso anseio por perenidade, por estabilidade, por segurança.
Diante disso, é possível notar que o processo de amadurecimento relaciona-se justamente com o percurso que o homem realiza, em sua existência, passando por situações agradáveis ou desagradáveis, dolorosas ou prazerosas, motivadoras ou desanimadoras, e com a forma como ele concede a si mesmo maior ou menor flexibilidade para transformar as suas aspirações, ou seja, integrando as suas perspectivas com as experiências vivenciadas.
O cotidiano é o palco de confluência de todas estas vertentes, onde são confrontadas as experiências tidas ao longo da vida, as marcas por elas deixadas, os sonhos e os temores com os quais revestimos o espanto, a impotência e a inquietude diante do mundo; a inevitabilidade da mudança constante, a necessidade de contínuo amadurecimento e o persistente impulso de prosseguir existindo.
Diante do complexo meandro que é a vida, flexibilidade significa desenvolver a capacidade para abandonar certos sonhos, valores, crenças ou ideais. Não porque nos desenvolvemos em cinismo, perdendo toda a possibilidade de esperança ou magia, passando a carregar no coração uma amargura doentia em relação à vida, mas pelo reconhecimento de que algumas aspirações, quando sacadas do universo que lhes deu origem, são pequenas e vazias, representando somente o apego que temos a certos aspectos mesquinhos de nossa personalidade.

25 de mai. de 2007

As cicatrizes

Quando tinha mais ou menos 5 anos de idade, numa brincadeira boba, acabei por dar com a testa em um chão de concreto. Passados tantos anos, esperar que um fato desta natureza possa ser narrado com detalhes e, ainda, que todos estes correspondam à verdade, é uma aspiração ambiciosa demais. Fora raras exceções, as pessoas normalmente tem lembranças enevoadas e fragmentadas desta primeira fase da infância, não acontecendo diferente comigo.
Digo que me recordo do incidente, de ter sido conduzido a um pronto socorro, de ter a minha sobrancelha costurada e de não ter feito qualquer escândalo, mas afirmar com certeza que minhas recordações são lembranças autênticas, como cópias retidas dos acontecimentos passados, isto eu não posso.
Conheço algumas armadilhas que os nossos pensamentos engendram, portanto estou quase seguro que o fato aconteceu, mas não tenho tanta certeza de que ele aconteceu como eu me recordo. Quem garante que não preenchi os lapsos da memória com algumas porções de criação própria, suprimindo eventuais lacunas?
De todo o acontecido fiquei, porém, com uma forma de evidência física, uma cicatriz, um emblema que reforça, quem sabe, a convicção de que aquilo aconteceu mesmo. Tenho, então, esta cicatriz que divide a minha sobrancelha esquerda em duas e deve medir uns 4 ou 5 centímetros. Apesar de, com o passar dos anos, ter me acostumado a ela e passado a tratá-la com relativa indiferença, não há como negar que, de tempos em tempos, encontro-a no lugar de sempre e disposta a recontar a mesma história outra vez, como os velhos marinheiros que, após uma vida em alto mar, vivem "amarrados" à terra firme e vêem no ato de contar incansavelmente as mesmas histórias a única forma de reviver velhas aventuras. A minha cicatriz está lá. Quieta e eloqüente. Sutil e ameaçadora. Ausente e sempre presente.
Entendo que a nossa capacidade de atenção é de tal forma diminuta que dá conta apenas de uma ínfima parte daquilo que temos descortinado ao nosso redor, por isso não me espanta o fato de que nem sempre eu e minha cicatriz troquemos reminiscências. Se pensarmos com alguma coerência à respeito, notaremos que é bastante natural o fato de não termos um inventário atualizado de todas as nossas cicatrizes, seja daquelas que clamam o seu lugar pela evidência física de terem marcado o nosso corpo, seja daquelas que marcaram o nosso espírito e, sob certo aspecto, vivem de forma furtiva e dissimulada em nossas ações e pensamentos.
Sobre as cicatrizes do nosso corpo, que um dia foram feridas e estiveram revestidas de dor, sabemos que o fato de serem cicatrizes, quase sempre representa que não são mais uma ameaça, são sim um símbolo de algo que foi curado e é por isso que podemos usá-las como uma analogia em relação às feridas que temos e curamos em nossa interioridade.
Entendemos a palavra cura como o restabelecimento do organismo a uma condição saudável. Restabelecer é estabelecer novamente, pressupondo que houve uma condição saudável anterior que, de forma geral, é considerada como uma forma de equilíbrio. Associamos ainda, à palavra cura, o sentido de sucesso na luta contra algum mal que nos aflige. A palavra cura, em seu sentido etimológico oriundo do latim, quer dizer cuidado. Então, cura, quando associada ao contexto terapêutico, evoca o cuidado que é necessário para se recuperar a saúde. Acho interessante que, quando tratamos da sanidade, normalmente não usamos a palavra saúde, aparentemente mais apropriada, mas a palavra cura. Pergunto-me se esta prática é fruto de caprichos casuais do fluxo das línguas ou se remete a práticas bem fundamentadas, que uma análise filológica rigorosa pode apurar com precisão. Ou ainda se ela traz embutida a idéia de que, na verdade, a saúde é fruto de um contínuo e incansável processo de "cuidado", sendo que falar cura significa dizer que estamos cuidando, talvez controlando, os nossos males.
Esta última e imaginativa tese cerca os meus pensamentos quando percebo que o anseio que temos de superar os males jamais será saciado. Superar é colocar-se acima de, ultrapassar. Quando pensamos na superação, pensamos também em distanciamento e, se possível, oblívio. A idéia de superar as nossas feridas predispõe que a cicatriz já possa representar uma forma de superação, a cristalização dos males em algo inofensivo, o encapsulamento daquilo que é prejudicial em uma forma anacrônica e de fácil manipulação, a transformação daquilo que ameaça em algo o qual possamos dedicar esquecimento ou indiferença. Desta forma, o mal que é passado já não é mais mal, foi superado.
Tenho estado inclinado a acreditar que de fato não superamos os males, as feridas. Não as abandonamos definitivamente em quartos trancados pelo passado e que jamais serão abertos. Não somos os heróis cuja vitória destrói a fera e apaga a sua existência. As lembranças que trazemos das boas e más experiências podem estar dormentes em espaços recônditos de nossa memória, as suas marcas, por sua vez, parecem manifestar-se em cada pequeno gesto que fazemos. Não superamos os nossos erros, não superamos as nossas mágoas, ressentimentos, medos e traumas. A distância que queremos criar e manter é apenas ilusão, uma simulação que nos tranqüiliza e ajuda a superar a fraqueza.
Podemos pensar diferente e acreditar que somos senhores plenos na arte de escolher o que nos convém lembrar e determinar o que pode nos influenciar ou não e de que maneira. A impressão que fica, entretanto, é que a realidade difere significativamente de tal perspectiva. O esquecimento sobre certas coisas é mais fruto de um gigantesco esforço cotidiano do que algo que aconteça espontaneamente. Muitas das nossas atividades comuns, de nossos objetivos e de nossas aspirações são gestos de esquecimento, são tentativas persistentes de apagar aspectos, ângulos ou parcelas de nossa existência. Não creio ser possível concebermos a vida por uma perspectiva de reversibilidade das experiências, pois a idéia de distanciamento do que já foi traz consigo esta ambição implícita, de superação como decreto de inexistência.
A nossa experiência ordinária demonstra, seja de maneira implícita ou explícita, que há uma permanência do passado no momento presente, entretanto esta permanência não é inerte ou estática. Ela é atuante e constantemente reconstruída de diversas formas, de tal maneira que, mesmo o que poderia ser considerado uma reincidência de eventos, pode se dar por diferentes vias de expressão. A permanência de eventos passados como condicionadores de ações presentes e futuras é um elemento fundamental, por exemplo, na teoria psicanalítica.
Os processos terapêuticos próprios da psicanálise tratam situações traumáticas pela via da assimilação e não da extirpação. Entendo que esta prática já sugere os caminhos que podemos tomar, mesmo quando escolhemos não fazer uso deste tipo de cura. Ao considerar que não apagamos as nossas cicatrizes, assim como o nosso passado e, nele, as coisas que nos marcam, entendo que temos de aprender a conviver com o que somos e com o que fizemos. Isto parece algo simples e fácil de ser feito, porém, dependendo da intensidade como os fatos vivenciados nos afetam, pode transformar-se em uma tarefa gigantesca.
Curiosamente, na minha modesta opinião, acho que a luta interior, que em algumas pessoas é bastante consciente e, na grande maioria, é inconsciente, deve chegar a um ponto onde passe por um processo de reconciliação, ou seja, o momento em que devemos depor as nossas armas e nos reconciliarmos com nós mesmos. Essa reconciliação significa reconciliar-se com as próprias fraquezas e erros, reconciliar-se com os momentos de sofrimento e dor, reconciliar-se com as perdas e os ganhos da vida, reconciliar-se com os fracassos e com as expectativas desmedidas. Tornar-se capaz de conceder a si mesmo um perdão suficientemente efetivo para permitir seguir novos caminhos e descobrir-se mais apto e mais forte para encarar a contínua novidade que é a vida, porque nós nunca superamos as nossas cicatrizes, apenas aprendemos a conviver com elas.

23 de mai. de 2007

...

Às vezes a represa contém uma força que é maior que as suas possibilidades de contenção. A partir de uma pequena fissura, toda a sua estrutura pode ceder.
Toda a energia necessária para conter a fúria da natureza, todo o desgaste que foi acumulando-se progressivamente até o clímax onde se desfaz a retenção, transforma-se em pedaços de resistência desfeita, espalhados sem intenção específica, tornados leito e fundo do rio que pacientemente aguardou o tempo de sua liberdade.
Às vezes a represa é entrave, um obstáculo ao fluxo da natureza e um embaraço difícil de se livrar. Ás vezes é apenas um monumento constrangido por velar um rio morto. Sem águas, sem forças, sem vida.
Às vezes a represa deveria estar ali, às vezes não. Às vezes deveria conter as águas, às vezes não.

6 de out. de 2006

Convicções

Há um dito popular que recomenda evitar discussões sobre política, futebol e religião. O sentido implícito de tal recomendação é a prudência e isto se deve à natureza polêmica destes temas, embora acredite que esta recomendação justifica-se menos pelos temas e mais pela forma como, em geral, são tratados.
Quando duas pessoas estabelecem uma relação de diálogo, podem discutir acerca de questões sobre as quais estão de acordo, sobre as quais discordam em alguns pontos e concordam em outros, ou ainda acerca de questões sobre as quais discordam completamente. Geralmente, todos temos baixa tolerância à discordância em relação aos nossos pontos de vista, entretanto há circunstâncias em que esta tolerância é menor ainda. Nestas situações específicas, somos pouco permeáveis ao poder da argumentação e mais resistentes aos artifícios da persuasão. Notaremos, então, que o que está em jogo não é simplesmente uma opinião, mas sim uma convicção.
As convicções, quer queiramos ou não, em grande parte, são predisposições subjetivas. Mesmo aquele que julga fundamentar as suas convicções em elementos racionais bem construídos, traz no fundo de seus arrazoamentos as inclinações que lhe são próprias. Soma-se a isto as influências que recebe do meio social e as marcas deixadas pelas experiências positivas e negativas que teve ao longo da vida. Portanto, falar em impessoalidade e objetividade como traços a serem buscados na consolidação de nossas convicções, embora pareça, à primeira vista, uma atitude desejável e louvável, soa mais como uma aspiração ufanista. Curiosamente, esta aspiração mostra a sua real necessidade na constatação extrema de que, confrontados com divergências, buscamos maneiras para que as nossas convicções afirmem-se por si mesmas, independentes da nossa veemência e da força que tenhamos de lançar mão para defendê-las.
A sabedoria popular cita a política, o futebol e a religião, porque o fundamento da convicção pessoal que cada um traz acerca destes assuntos raramente é objetiva e, se formos seguir o exposto acima, dificilmente poderia ser. As escolhas pessoais possuem uma multiplicidade de elementos que lhes influenciam, inclusive o interesse próprio. A expressão "ponto de vista" já explicita que a posição pessoal é uma emanação a partir de um ponto, uma posição específica a qual se toma como referência para contemplar a realidade e sabemos que, de cada posição que o observador ocupa, desenha-se uma diferente perspectiva a sua frente. Ao confrontarmos convicções, temos, simultaneamente, o confronto das posições escolhidas para projetar a visão.
Mais do que um simples capricho, o que está em jogo, muitas vezes, é a própria articulação do discurso que desdobra o real e lhe confere significado. Ao atacarmos as convicções de alguém, por mais ridícula que ela possa parecer aos nossos olhos, estamos atacando a estrutura que esta pessoa construiu para atribuir sentido a sua experiência de vida.
Tanto quanto a nossa condição de ser vivo exige que atendamos a algumas necessidades básicas, a condição humana parece exigir o significado. Por vezes tenho a impressão de que, na defesa das nossas convicções, vertemos um grau de energia similar àquele que empregaríamos na defesa da nossa vida, como se o apego a uma pretensa idéia de unidade na consciência também respondesse ao ímpeto de sobrevivência, isto é, a ameaça à consciência e aos seus elementos de construção, entre eles as convicções, adquirem a conotação de ameaça à própria existência.
Diante disso, poderíamos propor algumas questões. Estaríamos condenados a viver na dicotomia entre o confronto contínuo dos que não se aceitam ou a proposição de ilhas isoladas, santuários das convicções inatacáveis? Aceitaríamos o dito popular, evitando todo o assunto que melindre este ou aquele indivíduo, onde acabaríamos descobrindo que não poderíamos discutir acerca de qualquer coisa?
Primeiramente, devo dizer que, no meu entendimento, não existe assunto, por mais polêmico que possa parecer, que não possa ser discutido. A prudência que poderíamos ter ao evitar alguns temas, refere-se mais a um cuidadoso desvio para não despertar a selvageria que acreditamos estar adormecida sob o fino verniz de civilização que usamos para maquiar nossos atos. O problema nunca esteve ou estará nos temas, mas sim na atitude que temos em relação ao outro. Entendo que a nossa própria condição de finitude conduz para uma necessidade de complementaridade, obtida através do intercâmbio com outras pessoas. Em outras palavras, precisamos estabelecer relações com outras pessoas, com o mundo. Precisamos dialogar e este diálogo não pode ficar simplesmente restrito a um fragmento de realidade que julgamos por bem aceitar, ele tem de estender-se para o que não entendemos ainda, para o que está ainda fora do raio de nossa compreensão. Precisamos abrir mão do refúgio que construímos com as nossas restrições e isto não pode ser às custas da aniquilação de si ou do outro.
Se tornarmos a pensar acerca da discussão com o outro, como parte do diálogo que estabelecemos com a própria condição de existir, notaremos que ela só pode ser válida quando estabelecida na base da afirmação de sua condição intrínseca de intercâmbio de espíritos e busca pelo mútuo entendimento, atividade que exige o respeito, a aceitação e a cortesia. Não pode ser constituída em uma relação assimétrica de poder, onde um tenta impor, despoticamente, a sua construção de significado ao outro. Não nos enganemos, muitas das formas de relação que consideramos como equilibradas e normais, onde parece estar presente o diálogo e a convivência harmônica, são manifestações predatórias, onde o predador não regala-se com as vísceras de sua presa, mas com o espólio da imposição de sua visão de mundo e da sua vontade.

29 de set. de 2006

A ignorância das massas

A idéia de que uma pessoa possa representar legitimamente outra é algo complexo. Pretender que alguém possa representar uma vontade que freqüentemente pouco compreende a si mesma é uma atitude que inspira cautela. É claro que, dado o grau de complexidade das sociedades atuais, certas atividades tornam-se virtuais, pela impossibilidade de serem executadas de forma direta. É o caso do exercício político, quando pensado como instância de governo daquilo que é público.

A idéia da democracia representativa corresponde a dois aspectos bem claros: o princípio de que todos possuem o mesmo direito de arbitrar acerca da coisa pública e a impossibilidade material ou institucional de todos exercerem este direito de fato. Considerados tais aspectos, a democracia representativa teria como intenção propiciar que, não podendo haver, de forma direta, a participação de todos no exercício do poder para governar o que é público, esta participação seria indireta, ou seja, os diversos grupos sociais elegeriam representantes que defenderiam os seus interesses. A própria noção de tripartição dos poderes considerou-se como medida extra de salvaguarda, onde o governo é dividido para que melhor fiscalize a si próprio.

A verdade é que este sistema, embora pareça funcionar bem teoricamente, não é à prova das falhas de caráter dos homens e se vivemos em meio a uma espécie de inferno cotidiano, boa parte disto se deve à forma como o país é governado. Muitos são os problemas que podem ser considerados de ordem pública: desigualdade social, exploração, violência, falta de assistência médica, falta de moradia, falta de emprego, destruição do meio ambiente, entre outros, e todos se constituem em motivo de desconforto para aquele que não viva em um estado de alienação em relação à sociedade do qual faz parte.

Havendo tais problemas e relacionando-os com o exercício do governo, sendo este de forma representativa, é natural que, em geral, recaia sobre os representantes do povo a responsabilidade pelos mesmos. Some-se a estes fatos, ainda, a tradição da corrupção e da prevaricação, antes falados a boca pequena e hoje escancarados para quem quiser ou não ver, matéria-prima para o entretenimento dos cidadãos de todas as idades, obra e graça do circus midiaticus.

Se o governo é exercido por representantes do povo, alçados a esta categoria pelos votos de seus pares, é natural questionar se os cidadãos que votam estão fazendo um uso adequado dos seus direitos inalienáveis de participação política. Sob certo aspecto, os representantes do povo são considerados como criminosos, na medida em que falharam gravemente com as suas obrigações, e aqueles que os elegeram aparecem, então, como cúmplices. A cumplicidade é mais fácil de ser compreendida quando há alguma vantagem para o co-autor do crime. Para o governante que é tido como criminoso, é possível construir uma imagem mais ou menos aproximada das vantagens que este pode auferir do espólio da coisa pública que, por pertencer a todos, parece não pertencer a ninguém. Mas o eleitor que é seu cúmplice, o que ganha com isso? A prática comprova que, a menos que seja suficientemente próximo para usufruir da sangria, a sua paga são os citados problemas que afligem toda a sociedade. O cúmplice, então, não peca por má-fé, peca por estupidez.

São eleitos os que possuem mais votos. A maior parte dos votos, obviamente, são oriundos da maioria. A maioria, em um país como o nosso, é pobre, de baixo grau de instrução e com pouco acesso à educação. A maioria não compra nem lê jornais ou livros. A maioria não fala inglês, mas também não fala um português “bonito”. A maioria não come comida de qualidade (muitos sequer conseguem comer o suficiente). A maioria não escuta música de qualidade, não assiste a filmes de qualidade. A maioria tem pouco gosto pelo trabalho e, muitas vezes, um temperamento imoral e desleal. A maioria é uma massa ignara que possui o direito de votar e arrasta consigo o destino daqueles que são melhores do que ela em valor e sofisticação. A razão do problema está descoberta: são culpados os políticos, pela sua cupidez e egoísmo, e a maioria dos eleitores, os pobres, pela sua ignorância e rudeza.

Este diagnóstico, mesmo quando não formulado, assim, claramente, passa pela cabeça de grande parte daqueles que tiveram oportunidade de aprender a ler e escrever razoavelmente, os notáveis que ocupam o espaço apertado de uma minoria que tem condições de desfrutar das maravilhas do mundo contemporâneo e a base, imediatamente inferior, que vive a delirar com a possibilidade fazer parte desta elite. Aqueles que estão devidamente paramentados para a disputa darwinista pela sobrevivência, tão própria da atual sociedade capitalista. Os fortes, que administram empresas e instituições, detentores de posições de prestígio, líderes e exemplo para as suas comunidades; ou os aspirantes que de longe ambicionam os lugares dos que estão sobre as suas cabeças. Enfim, falo daqueles que, ao contrário das massas, tiveram um maior acesso à educação ou a uma melhor condição econômica. Aqueles que, por esforço próprio ou por auxílio de outrem, possuem condições de ler jornais e livros, aqueles que, no seu entendimento próprio, sabem como são as coisas, são instruídos. Pessoas que, normalmente, vêem na ignorância do povo a razão do atraso. Em suma, aqueles que sabem escolher bem os seus representantes.

Poderíamos pensar que esta forma de interpretar os fatos seria de uso exclusivo das elites que dominam o cenário político e econômico atual, pois historicamente toda a casta ou classe social detentora do poder sempre engendrou seus mecanismos para manter o status quo vigente. Porém, se tal visão ficasse restrita a um grupo reduzido, perderia a sua eficácia. Na prática, compartilham da mesma opinião uma significativa proporção daqueles que compõem a chamada classe média e que são considerados como pessoas com opinião própria e espírito crítico. Stuart Mill considera que todos os homens necessitam de uma justificativa moral para os seus atos e qual a melhor justificativa que dizer que a desgraça dos desgraçados é culpa deles mesmos.

Rosseau escreveu certa vez que os ricos consolam-se do mal que fazem aos pobres, acreditando que estes são suficientemente estúpidos para não sentirem nada. Palavras tão fortes quanto verdadeiras. É uma desculpa covarde justificar a própria omissão e indiferença, afirmando que a ignorância dos que são vilipendiados justifica toda a forma de exploração a que são submetidos.

Muitas vezes, as massas concederam generosas oportunidades à opressão e à infâmia, como bem atesta a história e não seria motivo de grande espanto se isto tornasse a acontecer, embora nunca tivessem feito agido sozinhas ou em proveito próprio. Porém, ao meu ver, é uma grande hipocrisia tributar ao nosso povo (porque os “melhores” não se julgam “povo”), de forma única e exclusiva, a carga de misérias que o tem afligido. Fazer isto significa pôr de lado o fato de que as elites de nosso país padecem, também, de uma ignorância sistemática, mais culpável, mais criminosa, pois uma coisa é ter um discernimento falho quando faltaram todas as oportunidades privilegiadas de aprendizado, outra é padecer do mesmo mal, onde, mesmo quando houve sacrifício, foi possível avançar mais.

Celebrizamos em nosso país a arte de fomentar as distorções mais absurdas, como a corrupção, a ostentação provinciana e o desperdício, cultivados na vizinhança da pobreza, da fome, das necessidades básicas não satisfeitas. Diante disso, como estranhar o fato de que os mais aquinhoados, aqueles que se consideram melhores e mais aptos para julgar, sejam tão incapazes para fazer uma interpretação suficientemente ampla e esclarecida da realidade? Podemos chamar de esclarecido alguém cuja interpretação da realidade é marcada pelo preconceito e a estreiteza, senão por um egoísmo e indiferença quase que fascistas? Por vezes tenho a impressão de que os brasileiros possuem uma aversão à democracia, pela forma como deploram as discussões, os consensos e a multiplicidade de pontos de vistas. Vivem a sonhar com a figura idealizada do herói que virá salvar a nação de sua decadência e elevá-la ao patamar de glória que faz jus por um desígnio divino, deixando de ser a eterna promessa nunca realizada. O que habita neste delírio coletivo é o desejo não tão secreto de encontrar um bom caudilho. Quem sabe, um ditador esclarecido, alheios à própria contradição implícita de tal alegoria. Escravos à procura de um senhor, porque visões unívocas dão sempre menos trabalho.

Assusta-me menos a propalada ignorância e culpabilidade do povo na decisão dos rumos de nosso país que a ignorância e culpabilidade da elite, dos “esclarecidos”. Enquanto os primeiros já vivem com a pecha de ralé, estes últimos acreditam terem suficiente conhecimento e discernimento para fazer boas escolhas, quando, em geral, todo o seu exercício político resume-se a duas coisas: periodicamente, a cada pleito, apertar alguns botões e lamuriar-se o resto do tempo por tudo que está errado. Nutrem-se diariamente com as informações distorcidas e fragmentárias produzidas por veículos de comunicação mal intencionados e comprometidos com a ordem das coisas, estudam para conseguir um diploma que faculte consumir a sua parte do saque, passando ao largo da educação e da cultura, propriamente ditas.

Acima de tudo, antes de falar da ignorância das massas e de como elas não sabem escolher os seus candidatos, tenhamos todos nós um minuto de lucidez para assumir que somos politicamente omissos e preguiçosos, que, no fundo, sabemos muito pouco sobre o que acontece de fato e, daquilo que sabemos, temos uma compreensão pobre e superficial. Antes de refugiar-nos no dogma da ignorância alheia, tomemos consciência daquela que nos pertence e que, insistentemente, não quer nos abandonar. Isto, por si só, já seria um grande avanço, porque é praticamente impossível resolver um problema se não reconhecermos que ele existe. Não nos esqueçamos que, enquanto estamos tomados pelo torpor, há interesses que ignoramos sendo muito bem defendidos, diariamente, nas casas onde as decisões que influenciam as nossas vidas são tomadas. O espaço aberto e sem dono sempre é o mais fácil de ser ocupado.

21 de jul. de 2006

Eles empre sabem

Dia 30 de junho de 2006, 16 horas no horário de Brasília. Começa a rolar a bola e a seleção brasileira, um dos nossos únicos orgulhos nacionais, diz que vai buscar, contra a França, a revanche pela derrota na final da Copa do Mundo de 1998. O sonho brasileiro durou uns 10 minutos, dali em diante seguiu-se o nervosismo, a aflição e a esperança de um milagre que nunca viria, tudo para esconder de nós mesmos o que já sabíamos: não havia como aquele time ganhar. Mas se o destino, por teimosia ou mero capricho, lhe concedesse a vitória, com certeza não a mereceria.
Como futebol, no Brasil, é uma forma de religião, onde cada time é uma espécie de seita e a Copa do Mundo um ato ecumênico, perder é motivo para todo o tipo de ruptura. Se perder já é uma coisa ruim, imagine perder parecendo que cada jogador tinha tomado uma caixa de Prozac? Crise séria... A culpa é do treinador, é dos jogadores, do coordenador técnico, do presidente da CBF, da Nike, da CIA, do efeito estufa, dos Illuminati, do Lex Luthor e sabe-se lá de quem mais. Não interessa, alguém é culpado e tem que pagar, nem que não se saiba exatamente como.
Afora toda a especulação e toda a imaginação envolvida em questão tão movida pela paixão, seria absurdo dizer que o grupo que construiu com tanto esmero um belo exemplo de fiasco não possuía um líder ou, pelo menos, um encarregado. Vozes que se deliciam com teorias conspiratórias dirão que este encarregado era um fantoche na mão de interesses escusos. Se for assim, o tal fantoche recebe um bom salário justamente para levar a culpa quando as coisas dão errado, é pago para ser o Judas que alimentará o fogo do final da festa. De uma forma ou de outra, ele era o responsável e é a ele que devemos pedir explicações, falo do técnico.
Dizem que, no Brasil, quando a coisa vai mal é sempre o técnico que paga o pato. Mas quem iremos culpar, senão aquele que escolhe a comissão técnica, convoca os jogadores, escolhe os titulares, estabelece o esquema de jogo, comanda os treinamentos, diz quem entra e quem sai, qual é o horário de trabalho e quando é dia de folga? Há muitos chefes que adoram impor a sua vontade aos outros, brincar com a autoridade, ser “o cara”, mas na hora que o navio está afundando, quase todos se disfarçam de marinheiro para não ter que afundar junto. Portanto não espanta que mais um “responsável” esteja usando uma saída dos fundos para fugir à turba, prática comum há milênios. O que espanta é que, mesmo em pleno século XXI, há os acólitos que querem proteger um partido que não é seu. Então ouvimos “conhecedores” do esporte nacional dizendo que o tal técnico é uma pessoa inteligente, experiente e competente, deve ter havido alguma coisa, não é possível que ele não tenha percebido o erro.
Bom... Primeiramente, pessoas inteligentes também erram e isto não é demérito. Arrogância, pretensão e descaso podem ser considerados deméritos, mas não o erro em si. A questão mais interessante aqui vai além do próprio universo futebolístico e mostra-se como projeção de um comportamento comum. O problema é que nós acreditamos que “eles” sempre sabem. Sabem o quê? Sabem o que estão fazendo.
Quando vemos um país como o nosso, com tanta corrupção, com tanta violência e tanta desigualdade, olhamos ao redor e pensamos que o nosso supremo mandatário não resolve os problemas porque tem má-fé, é um crápula, um corrupto, há interesses escusos, há grupos dominantes que controlam a sociedade e outras coisas do gênero. Sinceramente, penso que até deve haver tudo isso ao mesmo tempo, só que nunca consideramos o que deveria ser considerado em primeiro lugar: talvez ele não saiba o que esteja fazendo. Sempre especulamos inúmeras teorias, menos aquela na qual os que comandam são ineptos, incapazes e tão perplexos quanto nós que olhamos de longe e não entendemos nada. Há algo mais comum que o ser humano produzir uma série de atitudes idiotas?
Os que seguem olham de baixo os que são seguidos – sejam os políticos, as celebridades, os empresários, aqueles que parecem emanar uma aura de poder e auto-suficiência – e sempre pensam que eles sabem o que estão fazendo. Pensamento ridículo este, posto que quase nunca as pessoas sabem o que estão fazendo. Ainda mais quando extrapolam e não são mais somente responsáveis pelos seus anseios, mas passam a assumir o das outras pessoas.
O racionalismo iluminista conduziu a humanidade por um caminho onde passamos a acreditar numa infinita e crescente capacidade do homem para dominar a realidade. Paralelo a isto, o desdobramento do desenvolvimento social, econômico e do conhecimento sobre uma matriz influenciada por esta ótica do esclarecimento, quiçá plasmada sobre a influência do arquétipo de herói que, segundo Jung, habita a estruturação do psiquismo humano, produziu uma cepa de soberba embebida em individualismo. Em outras palavras, criamos o ideal do homem capaz, empreendedor, que sabe e resolve. Acreditamos que esta figura mítica surgirá na incerteza de tempos escuros e trará as soluções, resolverá os problemas, colocará ordem nas coisas. Mas não precisamos pensar em situações de grande perigo e comoção para conceber a figura solitária do herói, cada pequeno universo possui os seus problemas, contradições e, por que não dizer, heróis. O ponto principal é o fato de acreditarmos na idéia de pessoas que, individualmente, podem resolver situações que não dizem respeito somente a elas. Então, pensamos que aqueles que possuem mais poder do que nós, possuem também maior discernimento, maior capacidade para compreender a dimensão dos problemas que afligem a todos, para elaborar soluções e estabelecer uma ordem idealizada, onde na verdade cada qual tem seu sonho e somente a ansiedade é compartilhada.
O perigo reside no fato de que algumas pessoas passam a acreditar nesta fábula e julgam-se realmente superiores aos demais. Afinal de contas eles não são os heróis? Capazes de grandes façanhas e dotados de habilidades invulgares, fazem da sua imagem projetada o seu melhor amigo e trocam os espelhos por quadros devidamente retocados.
O grau de complexidade atingido pelas sociedades contemporâneas já deveria ter nos ensinado que, embora muitos possam destacar-se em diversas atividades, pouco podem as pessoas atuando de forma isolada. Mesmo o craque no futebol não resolve sozinho a parada se não tiver auxílio dos outros dez. Ele pode ser o diferencial, mas só é diferencial em um bom grupo, não sozinho.
Talvez possam me julgar um tanto pessimista, um tanto descrente, só que, na minha opinião, “eles” nem sempre sabem o que estão fazendo.

2 de jul. de 2006

Lugar que não existe

”Não confio em utopias. O comunismo é utópico, ao dizer que pode haver igualitarismo e riqueza ao mesmo tempo. As pessoas não trabalham com entusiasmo para aumentar o bem-estar alheio.” - Victoria Curzon Price, presidente da Mont Pelerin Society

Thomas More perdeu a cabeça. Não, ele não perdeu o juízo, literalmente perdeu a cabeça. Coube-lhe a triste sina de servir a um monarca demasiadamente caprichoso.
Freqüentemente, aqueles que, seja por artes do acaso ou por mérito próprio, desfrutam de uma posição que lhes concede poder sobre outras pessoas, vivem em uma espécie de realidade alternativa. Ocupam-se exageradamente com seus delirantes caprichos. Estes caprichos não são estáticos, inertes. Ao contrário, adquirem vida e corpo, podendo atingir envergadura suficiente para consumir os incautos que lhes deram azo.
Não me compete dizer se Henrique VIII era desta cepa, mas creio não estar sendo demasiado rigoroso ao ver nele um exemplo típico de déspota sanguinário. Diz-se que tal rei tinha a fixação pela idéia de gerar um herdeiro do sexo masculino. As contingências encarregaram-se de mostrar que seu poder não era tanto, pois apesar de não poupar cabeças para atingir tal objetivo, jamais teve um filho homem.
Casado com a rainha Catarina, Henrique VIII enamorou-se da jovem Ana Bolena. Mistura-se realeza, casamento, paixão, falta de escrúpulo e o ávido desejo por um sucessor varão e teremos um cenário bastante promissor.
O rei decide “desfazer” seu casamento para casar-se com a “outra”. O papa torce o nariz e resolve dizer que, pelo menos desta vez, seria bom que os poderosos seguissem algumas regras. O rei quer. A igreja não cede. O povo é crente. Como resolver este impasse? Muito simples, cria-se a própria igreja, de modo que a fé não fique mais atrapalhando as “questões de estado”.
Tudo resolvido? Quase... Um certo chanceler, conhecido por Sir Thomas, soldadinho do passo certo, acredita que este arranjo é errado e imoral. Tal figura já atraía alguma atenção por suas excentricidades. Havia escrito um livro, história fictícia onde criticava a propriedade e via virtude no trabalho. Alguns consideravam aquilo uma piada de mau gosto. Outros tentavam convencer de que não era brincadeira, o cara estava falando sério.
Diante do impasse, o tal Thomas More não faz muito alarde, apenas insiste teimosamente em não dar a sua benção. Afinal de contas, impedir é uma coisa, não aprovar é outra. Acontece que para o rei não bastava, ele algo mais sólido, o juramento de lealdade. Por mais estranho que possa parecer ao nosso tempo, vontade forte e determinação não são prerrogativas únicas de quem detém o poder, embora para estes seja sempre mais fácil praticar a teimosia. Num confronto onde um entrava com o machado e o outro com o pescoço, o desfecho da situação era óbvio e inevitável.
A história registra que Thomas More, como católico convicto, não aceitou o divórcio forçado de Henrique VIII, muito menos toda a situação que o envolveu. Como humanista que era, nos faz suspeitar que talvez a questão não estivesse restrita simplesmente à fidelidade a Roma, mas quem vai saber.
Ao contrário do que se possa pensar, não foi a morte como um mártir e a posterior santificação que lhe garantiram um lugar na história, mas o seu livro A Utopia. Obra de ficção que narra a existência da ilha chamada Utopia e de sua organização social. Através da descrição de uma sociedade imaginária, é tecida a crítica dos costumes, dos excessos dos governantes, assim como do parasitismo dos mais favorecidos, da vaidade, do orgulho e da puerilidade.
Desde então, o termo utopia passou a designar toda a forma de sociedade ideal, onde haveria paz, harmonia e felicidade entre os homens. Como isso não é algo que seja conhecido (muitos acreditam ser impossível), utopia ganhou os significados de aquilo que é somente imaginário, inalcançável, quimera, ilusão. Nada mais natural, visto que utopia , em grego, significa “não lugar” ou “lugar que não existe”.
Hoje, a palavra utopia não perdeu estes sentidos, apenas acrescentou a eles o caráter pejorativo. Este desencanto não é pela palavra, ele é mais amplo, mais abrangente. Engloba o mundo, a sociedade, o cotidiano e, quando há coragem suficiente, o desencanto consigo mesmo. Creio que sempre terei a dúvida se o chamado realismo, encarado como obsessão por aquilo que é considerado concreto e tangível, é expressão de uma personalidade suficientemente forte para abrir mão de suas ilusões em prol de atingir a verdade das coisas ou apenas o ato covarde de quem abdica de pensar o melhor por temer a frustração e o desapontamento.
Não vejo motivos para considerar o desencanto como um fenômeno injustificado, entretanto transformá-lo em atitude prática ou uma propedêutica para qualquer assunto é assumir a impotência do homem diante de sua humanidade. Podemos, de forma coerente, não acreditar em possibilidades ditas utópicas, entendendo este acreditar como uma fé cega e incondicional àquilo que é somente idealizado. Agora, se entendermos este acreditar como aceitar novas possibilidades e, eventualmente, apostar nelas, então esta ausência de confiança passa a ser inércia, omissão e pequenez. Pouco alçado como sou, pelo parco entendimento que tenho das coisas, só consigo imaginar que a maior das utopias é acreditar que seja possível conciliar o bem de todos com a ganância de cada um.

27 de fev. de 2006

Deuses, Heróis... e Ídolos

Dizemos, normalmente, com ares de grande sabedoria, que o homem primitivo, por não conhecer e compreender a forma segundo a qual se davam os fenômenos naturais, transformou-os em deuses.
Afirmar simplesmente que, na ausência do entendimento, sobrevém uma atitude tida como obscurantista creio que é uma mostra de propensão às explicações simples e incompletas para substituir a ignorância, ou seja, algo do mesmo tipo da solução que imaginamos que os primitivos tenham desenvolvido para explicar as chuvas.
Não julgo de todo improvável que culturas ancestrais tenham estabelecido com a natureza uma relação religiosa, mas reduzir a questão da forma como usualmente acontece é trocar o silêncio por algo que não lhe é substancialmente superior. Inclusive porque a própria religiosidade é um assunto complexo, sendo tratado de forma simplória por aqueles que preferem negar o que não entendem.
Mais interessante e esclarecedor aqui é tentar compreender o que, necessariamente, poderia levar o ser humano, que vivia continuamente a confrontação com a sobrevivência, a criar interpretações calcadas em elementos transcendentes para o seu cotidiano. Da mesma maneira que a gênese dos deuses, ao meu ver, surge apenas como uma hipótese, aprofundar o entendimento do desdobramento existencial aqui envolvido nada mais é do que um exercício de imaginação. Por isso tento imaginar o sentimento que mobilizava aquele que, diante dos fenômenos que o cercavam, buscava acima de tudo continuar existindo.
Se formos considerar a pirâmide das necessidades de Maslow, podemos notar que as necessidades básicas do ser humano, tanto quanto essenciais, são poucas e, aparentemente, simples: comida, água e abrigo. Na aurora da humanidade, a batalha cotidiana era justamente tendo em vista saciar estas necessidades, pelo fato de nunca estarem garantidas.
Numa situação assim, a vida humana mantém-se em uma condição delicada e instável. As ameaças são muitas e originam-se de diversos pontos, sendo que nenhum destes é controlado. A tensão contínua de manutenção da vida traz consigo a noção de impotência e não está descartada possibilidade de que esta seja superada pela crença em alguma força que possa sobrepor-se a este sentimento, exercendo sobre os elementos ameaçadores um controle maior e mais efetivo. Não identificando em nenhuma entidade tangível a potência ideal, ela a passa a ser buscada em algo que não é percebido de forma direta e, daí, a migração para o sentido de transcendência. Transcendência entendida simples e objetivamente como aquilo que transcende a percepção direta, projetando-se em algo que pode ser somente intuído ou imaginado.
Com o passar dos séculos, as diversas culturas humanas buscaram aperfeiçoar-se na arte de garantir comida, água e abrigo, ao mesmo tempo em que buscavam impor-se diante da natureza. Sabemos, porém, que as necessidades possuem uma cadeia de desenvolvimento, progredindo com relativa sofisticação. Portanto não poderíamos descartar a hipótese de que a evolução de nossas necessidades trouxesse consigo a alteração das concepções do divino.
Seria precipitado ver nas figuras dos deuses e heróis presentes na mitologia grega a projeção dos anseios de um povo? Hércules e a sua força não representariam a relatividade da força humana, diante da grandeza do mundo? No próprio mito de Prometeu, conta-se que seu irmão Epimeteu, encarregado de distribuir os dons entre os animais, distribuiu todos, não sobrando nenhum para o homem que ficou por último, não sendo, por isso, nem o mais veloz ou o mais forte dos seres. Não está aqui implícita sensação de impotência humana? Os deuses gregos, por sua vez, não eram muito diferentes dos homens. Ficavam irados, coléricos ou alegres. Tinham ciúme, paixão, volúpia, cobiça, luxúria e inveja. Não eram muito melhores do que os homens, embora valorizassem a virtude. O que os tornava deuses, então? Acima de tudo, eram imortais. Além disso, possuíam dons superiores que lhes permitiam conceder aos humanos dons e condições para suplantarem eventuais limitações comuns à maioria da espécie. Não vemos aqui a impotência humana refletida na imagem dos deuses? Curiosamente, não incomodava aos gregos que seus deuses tivessem algumas das marcas da imperfeição humana, suportavam as fraquezas de caráter, mas não a falta de poder.
Passados tantos séculos e tantas transformações, não creio que tenha havido modificações tão substancias acerca do nosso comportamento e das nossas predisposições. Os mais apressados diriam que é óbvia a simples substituição das figuras dos deuses e a conseqüente manutenção das crenças, sempre com roupagens diferentes. Sim e não.
Pressupomos, de forma genérica, que aqueles cultos foram substituídos pelas grandes religiões atuais, tais como o cristianismo, o judaísmo, o islamismo ou o budismo. O que não percebemos de maneira direta é que, mais do que as religiões instituídas, ocupa um lugar destacado na moderna mitologia o culto das personalidades. Com isso quero me referir a atores, músicos, políticos, esportistas e celebridades em geral.
As religiões institucionalizadas possuem rituais, símbolos, organização e estruturas que permitem com que sejam identificadas facilmente. O mesmo não acontece com o culto informal dos “ídolos” contemporâneos e talvez este seja o fator que faz com que este fenômeno não tenha suficiente atenção e quando o consideramos é como algo pequeno, despido de qualquer importância.
Se fôssemos atribuir a mesma linha de pensamento adotada antes, associando o sentimento de impotência com a mitificação e o culto, poderíamos abrir caminhos interessantes para novos questionamentos.
O culto da celebridade possui meios próprios para a sua criação, desenvolvimento e manutenção e acredito que o mais representativo destes meios é aquilo que denominamos mídia. Os diversos meios de comunicação, juntamente com a participação dos grupos sociais, acaba por transformar em domínio público a singularidade de uma existência individual. Entretanto, esta trajetória individual, na maioria dos casos das figuras cultuadas, é habilidosamente desbastada de certos elementos aparentemente desagradáveis, sendo que mesmo estes, quando aqui apresentados, adquirem conotações distintas das usuais.
Precisamos sempre entender que o apelo de sobrevivência é contínua, algo que não há como ser apagado ou negligenciado. É um impulso puro e indefinível, muitas vezes sequer pressentido, sendo acobertado por uma série de significados que engendramos para justificar os nossos atos. Em existindo este impulso, pela própria característica de fluxo e movimento que lhe é próprio a sua natureza, não possui uma forma ou um sentido definido pela nossa consciência, manifestando-se pelas formas como interpretamos e vivenciamos a nossa existência.
Se em épocas remotas a ameaça manifestava-se através dos animais, das intempéries e da dificuldade em obter alimento e água, atualmente as pessoas sentem-se ameaçadas por outros fatores. São as contas, o emprego, a violência urbana e os desejos não satisfeitos. As buscas por ascensão e aceitação social, por amor, sucesso e realização profissional. Os dilemas éticos, o medo, a angústia e a ansiedade. Elementos tão comuns ao cotidiano de todos nós. É neste cenário, então, que o ídolo, a atual reencarnação dos deuses e heróis míticos, aparece como aquele acima dos problemas do homem comum.
A imagem construída e cultuada nega a miríade de nuances que caracteriza a particularidade e a singularidade da vida de cada ser humano. O ídolo é uma figura mais simples, menos caleidoscópica e multidimensionada, figura paradoxal, porque menos intensa em sua profundidade interior, ao mesmo tempo em que de ampla intensidade na sua dimensão exterior e na forma como afeta os outros. Um personagem, uma criação. Ídolo cultuado justamente porque aparenta não padecer dos males que afetam os outros. O ídolo não paga aluguel. Não conta o dinheiro para ir ao supermercado, ao restaurante ou ao cinema. Ele não é rejeitado amorosamente, não é ignorado ou tratado com indiferença. Ele é um sucesso, uma referência, um orgulho para a sua família. Todos tratam-no com deferência, respeito e devoção. Em suma, aos nossos olhos ele não é impotente diante da vida.
Se apelarmos ao nosso bom senso, perceberemos que, além da alegoria da nossa impotência, o ídolo é um ser humano e, ao seu modo, traz consigo toda a amplitude existencial que esta condição acarreta. O que é espantosamente normal na nossa forma de encarar a vida é que acreditamos que as insatisfações tem como razão específica sempre algo que não possuímos. Talvez seja possível que aquilo que mais nos falta não sejam os elementos cobiçados em imagens difusas e irreais, mas apenas ousadia para o diferente e humildade para aceitar que nada é mais natural na vida do que as dificuldades e os reveses, ou vocês acham que foi fácil sair do útero, aprender a ver, a ouvir, a falar e a andar?