25 de nov. de 2005

O ótimo como ismo

É possível que eu tenha uma visão estreita, pois penso que toda a forma de masoquismo se constitui em uma patologia. A dor física é um dispositivo que tem como finalidade alertar em relação a alterações que possam ser nocivas ao organismo. Embora muitos de nós julguem que a vida seria bem melhor sem estes alertas, devemos saber que, nesta condição, não duraríamos muito, sucumbiríamos aos menores dos males. A dor faz parte do intrincado mecanismo que garante a manutenção da vida, sendo algo natural e, por incrível que pareça, benéfico. Isso não torna menos bizarro o ato de comprazer-se em sentir dor, pois, se a dor informa quando o organismo requer uma atenção especial, a sua ausência deveria constituir-se em sinal de harmonia e equilíbrio. Sendo assim, buscar a dor é um ato mórbido, um atentado à vida, entendida como princípio.
Como diria Arnaldo Antunes, "o corpo ainda é pouco", se múltiplas são as possibilidades de dores físicas, tantas outras são as dores psíquicas e comprazer-se com esta outra forma de mal-estar não deixa de ser tão mórbido quanto a anterior. Temo que a dor psíquica seja cultivada de forma mais extensa e contínua, por um número substancialmente superior aos que simplesmente se atém ao puro e simples masoquismo físico.
Ao falar em masoquismo, devemos lembrar que este termo está ligado a um tipo de comportamento específico, onde concebe-se a dor como veículo de prazer. Mantendo esta relação, parece natural ao masoquista buscar a dor que lhe causa prazer, ou seja, ele movimenta-se voluntariamente em direção àquilo que a maioria das pessoas busca afastar-se. Diríamos, então, que aquele que cultiva voluntariamente a dor, seja física ou psíquica, é masoquista e isto é um erro. Acredito que muitas vezes as pessoas deslocam-se voluntariamente em direção a estados de dor e aflição, embora isto nem sempre esteja atrelado diretamente a uma satisfação. Em outras palavras, é comum às pessoas fazerem-se sofrer, mas isto não quer dizer que elas o façam por prazer e, pelo menos à primeira vista, esta é uma morbidez muito maior que o próprio masoquismo.
De modo geral, toda a incomodação física é facilmente percebida, ainda que nem sempre seja adequadamente compreendida. A incomodação psíquica, por sua vez, possivelmente pelo próprio caráter de intangibilidade que lhe é peculiar, percorre a nossa percepção, com certa freqüência, de forma mais ou menos implícita. Em virtude disso, parece ser comum que esta última possa ser provocada por movimentos voluntários, ainda que não sejam conscientes ou intencionais.
Alguém seria capaz de negar que há pessoas que tudo o que constroem para si e para os outros são quadros nefastos, onde cada pequeno aspecto da realidade representa algo que se configura como um mal? O senso comum designa estas pessoas como pessimistas. Diria-se que pessimismo seria a tendência de olhar as coisas pelo lado pior, poderíamos acrescentar que ele envolve também a atividade criativa de elaborar, inclusive, lados piores que, aparentemente, não existem. Nesta condição, o ser humano possui um desgosto natural pela vida e, se antes foi dito que a apreciação pela dor tinha uma conotação de atentar contra a vida, é inevitável que aquele que cultiva esta inclinação predispõe-se a viver de forma miserável e tortuosa, antagonizando-se com a sua própria vitalidade. Não seria esta uma maneira de auto impor-se um sofrimento psíquico sem qualquer finalidade de prazer? Não nos enganemos, porém, todos nós, em maior ou menor grau, cultivamos alguma forma de sofrimento interno que não tem qualquer outra utilidade senão nos impedir de viver de forma mais plena e saudável.
Tomado o exemplo do pessimismo, pensemos que o ismo acoplado à palavra lhe confere uma tonalidade meio pegajosa da qual é difícil livrar-se. Ao pensarmos seriamente no seu oposto, o otimismo, corremos o risco de ter uma percepção similar. Se adotar o pessimismo é condenar-se a viver em meio a uma obscuridade, nem que para isso tenha que se apagar as luzes, adotar o otimismo significa ver as luzes acesas mesmo quando estamos em meio à escuridão. Se adotar o pessimismo é negar-se o direito de viver, o puro e simples otimismo exige uma cegueira perigosa, senão suicida.
Coexistimos em uma realidade repleta de ameaças, quase todas criadas pelo próprio ser humano. Em virtude da gravidade dos problemas de nosso tempo, passamos a acreditar que, para garantir um mínimo de sanidade e de possibilidade de alegria, necessitamos ignorá-los sistematicamente e chamamos isto de otimismo. Àqueles que resolvem nos lembrar quão grave é a nossa situação, atribuímos a alcunha de pessimistas. Como uma criança, pensamos que, ao colocar as mãos sobre os nossos olhos, nos escondemos. Pergunto-me se, do alto de toda a pretensão de conhecimento e domínio que o homem erigiu como um monumento a si próprio, podemos confiar que os nossos males resolvam-se por si próprios, simplesmente porque não nos recusamos a ser pessimistas. Considero detestável a atitude de afirmar sempre que tudo está perdido e sem solução, da mesma forma que considero patético apoiar-se na solitária convicção de que "tudo vai dar certo", não importando como. Somos obrigados a reconhecer, quer queiramos ou não, que a poluição, a miséria, a violência, o aquecimento global, a exploração desenfreada dos recursos naturais e a desigualdade social não são fenômenos naturais e espontâneos, são fruto das escolhas humanas e somente novas escolhas podem produzir novos caminhos. É natural que evitemos pensar nestas questões, porque sabemos que a pressão que elas exercem sobre o nosso espírito é tão intensa que temos medo de quebrar. Aqui sofremos de outro vício criado em nossa cultura: o individualismo. Realmente, tudo isto é grande demais para uma pessoa, entretanto esquecemos que estamos falando de coisas que dizem respeito a todos nós e somente olhando as coisas sob esta perspectiva é que conseguimos perceber que, talvez, o maior de nossos problemas sejam as distâncias que nos separam uns dos outros e que pouco fazemos para superar. Enquanto isso, continuaremos achando que tudo está perdido ou que tudo dará certo, somente achando...

15 de nov. de 2005

Devaneios...

Há diversas formas de noite.
A noite luminosa, recoberta de promessas e sutilezas. Pura magia, mistura simbólica de sonho e realidade retida em uma dobra resguardada do tempo e do espaço comuns, isenta de toda a degradação.
A noite tormentosa, de segredos que, não podendo calar, saltam e arremessam-se contra os seus carcereiros e, indiscriminadamente, atingem qualquer um que esteja próximo.
A noite lúgubre, de maus presságios, de violência e deterioração. Período de quedas e de insurgências, onde a alma revolta-se contra si mesma e põe-se a perder.
A noite de paz, do sono calmo, da consciência tranqüila. A personificação do descanso, da pausa, da recomposição. Aquela que está em comunhão com o dia que se foi e com o que virá.
A noite inquieta, que sujeita as suas vítimas à tortura do revirar-se entre os lençóis, enquanto lhes subtrai o sono e substitui-o por angústias e preocupações que não se resolvem.
A noite perversa, de falsas alegrias, de pura mentira, de engano e traição.
A noite misteriosa, que, mesmo ocultando, parece revelar os faunos e as fadas, os magos e as bruxas, os anjos e os demônios, seja nas sombras profundas que se estendem por além dos bosques, seja nas sombras profundas que se estendem por além de nossas consciências.
A noite alegre, do riso fácil, da dança, dos amigos, da tonturinha, da catarse dos pequenos males cotidianos, do flerte e da puerilidade sadia.
A noite estúpida, que é a noite alegre que passou da conta.
A noite de luxúria, que é a noite de luxúria.
Tantas são estas noites e tantas outras mais há...

11 de nov. de 2005

Afeição e Dominância

Por vezes penso que sempre retornarei, de várias maneiras diferentes, àquilo que concerne ao poder. No meu entendimento, poder significa capacidade para realizar algo, uma capacidade disponível e da qual se goza com plena liberdade.
A pertinência da questão do poder se revela quando percebemos que o desejo e a vontade, na condição de moventes do agir humano, se dão a existir através de uma relação com o discernimento ou a intuição de potência que trazemos conosco.
Entendo desejo como o impulso de se mover em direção a algo. Entendo vontade como a força que, atuando sobre o pensamento e o agir, nos coloca ou nos retira da direção proposta por um desejo.
Esta relação entre discernimento/intuição de potência e desejo/vontade, de influência claramente espinosista, se estabelece na medida que compreendo ser a limitação uma sensação bastante presente no ser humano, algo que cristaliza aquilo que designamos por finitude. Primeiramente, nos vemos limitados no tempo de existência, mas esta é apenas uma barreira virtual com a qual temos muita dificuldade de conviver. Há dezenas de situações que impõem limitações ao nosso agir e à nossa satisfação, no dia-a-dia. Provavelmente porque o desejo dispõe de certa liberdade de idealização, podendo ser composto, a partir da imaginação, em uma multiplicidade incontável de variações. Entretanto, a capacidade percebida para a consecução destes desejos sempre é limitada.
Neste ponto, parece criar-se um círculo vicioso: deseja-se e confronta-se o desejar com uma limitação de poder em substancializar o desejo e isto, por si só, já constitui-se em gerador do desejo, freqüentemente implícito, de ter mais poder. Seguindo esta linha, na maior parte do tempo desejamos coisas que aumentem o nosso poder para conseguir o que desejamos. Isto encontra eco e um fundamento mais preciso no conceito de conatus de Espinosa, onde, partindo da determinação de que a essência humana é o esforço de perseverar na existência, procuramos tudo o que acreditamos que possa aumentar o poder de, justamente, perseverar na existência.
Coloque-se o indivíduo como eixo central do desejo e da vontade e entendendo o próprio ser humano como um movimento, poderíamos dizer que o fluxo de propagação do poder se daria em dois sentidos, um endógeno e outro exógeno. No primeiro caso, poder sobre si. No segundo, sobre aquilo que o circunda.
A primeira alternativa normalmente é desconsiderada, pois é usual acreditarmos que os desejos são de natureza espontânea e injustificada. Os compreendemos como expressão de indeterminismo, de inconstância e de desordem, não podendo ser enquadrados em qualquer quadro discernível. Ou os seguimos ou os ignoramos, não os explicamos. Aqui, aceitamos tacitamente que não possuímos poder sobre nós mesmos, ou melhor, sobre certas movimentações de nosso espírito.
Não podendo controlar este movimento, deslocamos o nosso anseio para tentar controlar os objetos almejados pelos nossos desejos e, então, o poder se desloca para fora de si, para o mundo. Se acreditamos ser difícil, senão impossível, controlar a nós mesmos, quem dirá controlar o mundo?
É natural que, diante de tal desafio, sobre somente uma profunda intuição de impotência. E como lidamos com isso? Geralmente, criando uma imagem de mundo própria, onde se exerça a maior influência possível, uma forma de ambiente controlado onde seja viável manter na maior parte do tempo a ilusão de domínio e de controle.
Posto que mesmo as pessoas acabam por se constituir em objetos que fazem parte da construção de mundo individual, há a necessidade de estender o domínio até elas.
À primeira vista, aqui ocorre o choque entre duas noções que, pelo menos na aparência, são completamente distintas: afeição e poder. Entendemos a afeição como algo positivo, um sentimento desinteressado, gratificante e, por que não dizer, necessário. Parece algo indissociável da nossa natureza a necessidade de contato, de aproximação, de construção de laços e celebração de vínculos. Temos a impressão de não nos bastarmos e de precisarmos destas aproximações que se dão em diversos graus de afinidades e níveis de intimidade. O outro é parte daquilo que somos, da nossa constituição, servindo, inclusive, de espelho que projeta um reflexo que permite nos conhecermos melhor. Mesmo o mais individualista dos humanos necessita do outro para projetar sobre ele o seu individualismo. Daí podemos concluir que temos o impulso natural de estender a nossa dominância para aqueles com quem convivemos, dominância esta que se buscará impor mais ou menos conforme o grau de proximidade.
A palavra afeição tem como sinônimo afeto (affectus, em latim). Curiosamente, na mesma medida que afeto representa um sentimento positivo, a palavra evoca também um significado de sujeição. Poderíamos dizer que este sentimento sujeita a nossa vontade, da mesma forma que os desejos, manifestando-se como tal, ou seja, como impulso interno, despido de ordem e sentido. Da mesma forma que os desejos, então, a própria afeição, pela impossibilidade de ser controlada, acaba por gerar a intenção de ter poder sobre o objeto que a motiva e esta é a relação comum que estabelecemos entre afeição e poder.
Inevitável é admitir que o objeto que se pretende dominar – o outro – também vivencia experiência similar, isto é, vive o conflito pessoal de sua relação distorcida e fragmentada com o poder, afetando a forma como se vê, como age e como se relaciona consigo mesmo e com o mundo.
O que se nota é que as relações afetivas, seja de forma implícita, seja de forma explícita, muitas vezes acabam por se tornar o palco de disputas por poder e, conseqüentemente, por dominação.
Não creio que possa apontar, para esta questão, um caminho melhor que qualquer outra pessoa. Talvez o aspecto mais importante aqui seja notar que construímos paulatinamente situações que nos fazem sofrer e que tornam as nossas vidas mais pesadas, mais difíceis de serem vividas. Não seriam todos os grandes males do mundo fruto da eterna disputa por poder? A própria experiência individual já não registra quão desgastante é este estado contínuo e latente de litígio que mantemos em relação a nós mesmos, a nossos semelhantes e ao mundo? Penso que um bom exemplo a ser seguido é o daqueles que, abandonando a intenção de exercer domínio sobre a realidade que os circunda, acharam por bem buscar aumentar o poder sobre si mesmos e assim libertaram-se das amarras de viver em um mundo pequeno e claustrofóbico que, embora pareça seguro, se constitui na prisão de cada um.

8 de nov. de 2005

Sempre ao mar

Que se esgotem os prantos
Que por vezes são tantos
Que se faça um silêncio
Uma pausa, um pensar
Que se juntem as dores
Os espinhos, os temores
Tudo aquilo que é sombra
E esqueçamos no mar

Que se perca o tempo
Que se escoem os dias
Que se perca o lamento
Inquieto ao calar
Não só por tormento
Não só porque havias
De perder-te no mundo
Pra te encontrares no mar

Que o dia resista
Que a noite persista
Naquele momento
Naquele lugar
Onde a vida é serena
A brisa é amena
E dali só saia
Pra banhar-se no mar

E em cada viagem
Que se tenha coragem
Que se traga no peito
O coração a cantar
Pois a vida tortura
A vida amargura
Mas, pra todas as dores

Sempre haverá o mar

28 de out. de 2005

Sobre algumas perplexidades

Penso que ninguém aceita com facilidade o fato de que há momentos em que o discernimento simplesmente naufraga.
Parece difícil explicar o porquê de, num instante estarmos nos sentindo seguros daquilo que sabemos, do que compreendemos e do que podemos fazer, e no outro sermos tomados por todo o tipo de dúvidas. Se voltarmos a nossa atenção para a constituição frágil da nossa habilidade de conhecer, inclusive no que concerne ao entendimento que temos de nós mesmos e, além disso, percebermos que a vida impõe a cada momento um novo cenário, nada pareceria mais natural do que o fato de que não temos todas as respostas, sendo que aquelas que possuímos são escassas, parciais e provisórias, senão equivocadas.
Quando pensamos em conhecimentos, normalmente os concebemos dentro de sentidos práticos e objetivos. Se incomoda não ter controle sobre os fenômenos que nos rodeiam e nos afetam - ao mesmo tempo em que buscamos, desde tempos ancestrais, dominar suficientemente o nosso ambiente para não nos sentirmos ameaçados - é preciso reconhecer que o nível de desconhecimento e de incompreensão que nutrimos em relação a nós mesmos, por si só, já é móvel de uma intranquilidade, de uma angústia, de um desconforto.
Um olhar superficial já revela que temos a tendência comum de objetualizar os sentimentos, ou seja, a cada sentimento atrelar um objeto. Desta maneira, ao nos sentirmos enfurecidos, buscamos o objeto deste enfurecimento; ao situar este objeto, seja de forma adequada ou não, ele passa a simbolizar o próprio sentimento e a sua presença evoca sempre a respectiva imagem construída. O mesmo se dá quando nos sentimos alegres em presença de alguma pessoa. A partir de um dado momento, objetualizamos a figura desta pessoa, transformando-a no móvel da alegria, sendo que, nos momentos de tristeza, o que buscamos é o objeto que identificamos como motivador do sentimento desejado.
Ninguém nega que, neste processo, se dão sentimentos negativos e destrutivos, assim como, sentimentos positivos e construtivos. O que se sobressai, porém, é a distorção que alimentamos e que fatalmente nos conduzirá a rompimentos sucessivos com o discernimento que temos destas relações entre sentimentos e objetos. Não é possível que a fruição de um dado prazer propicie sempre e continuamente a mesma cota de satisfação. De igual maneira, não é possível que a presença de uma pessoa amada produza sempre uma mesma intensidade de alegria. Assim fica fácil perceber que transferimos a instabilidade das nossas relações internas para as nossas relações com o mundo.
Sentimentos que normalmente vinculamos ao bem-estar, como o prazer e a alegria, se referem mais a perspectivas existenciais próprias do ser humano (de forma geral) e do indivíduo (de forma particular), do que a uma relação verdadeira e legítima entre sujeitos e objetos. Em outras palavras, a legitimidade da alegria sentida em uma dada experiência não se deve à legitimidade do laço que une aquele que está fruindo e aquilo que é fruído. A legitimidade se encontra no momento em que se avizinham a experiência vivenciada e uma forma de autenticidade intrínseca a nossa condição, fazendo com que não hajam objetos propriamente ditos ou rotas de ligação entre estes e a nossa fruição "alegre". O que há é um trânsito, uma aproximação com aquilo que somos, onde nos identificamos e nos sentimos mais plenos, mais fortes, mais seguros. Como, por força do hábito, não reconhecemos isto, acabamos por presenciar a diluição nos nossos sentimentos positivos, conforme se diluem as imagens que possuímos de nossos objetos de satisfação, sobrando por fim um vazio, uma falta, até que identifiquemos um novo objeto, uma nova escolha.
Não é difícil perceber, então, que o nosso discernimento naufraga por tentar se firmar em bases demasiadamente escorregadias, mesmo que faça isto com uma pretensão de segurança e solidez. A vida é, essencialmente, uma corrente fluida. Acredito ser possível conduzí-la por determinados caminhos, mas lastreá-la, fixá-la, amarrá-la a algo com a intenção de retê-la, segurá-la e dominá-la é um exercício que só conduzirá a uma anulação, porque a sua natureza íntima é justamente o oposto de tais intenções.
Uma reflexão não muito profunda já revela que o nosso incômodo é indicativo de que exaurimos algo em nossas concepções de realidade e de vida. A consonância com esta percepção nos obriga, então, a aceitar que o nosso discernimento naufraga em alguns momentos para que possa se revitalizar e continuar possibilitando o movimento contínuo, indicativo real de que ainda estamos vivos e de que não somos somente autômatos que arrastam os seus andrajos por uma superfície áspera, sem nunca encontrar um lar.

23 de out. de 2005

Algumas considerações acerca da alegria

“Os filósofos que especularam sobre a significação da vida e sobre o destino do homem não notaram suficientemente que a natureza deu-se ao trabalho de nos informar por si própria acerca disso. Ela nos adverte, por um signo preciso, que o nosso destino foi atingido. Este signo é a alegria.” – Henri-Louis Bergson

Qual o melhor termo a ser usado quando tratamos do nosso momento histórico, da nossa época? Normalmente, na pretensão de sermos rigorosamente corretos, diríamos contemporaneidade. Termo formal, simples e de sentido inequívoco.
Se tomarmos esta “contemporaneidade” e tentarmos identificar alguns sinais que lhe são definidores, notaremos que há pensadores que se arriscam, ainda que de forma controversa, a qualificar este tempo como pós-moderno (vide Lyotard e Vattimo) ou pós-industrial (não é este o termo empregado por Domenico Di Masi?). Há a possibilidade de ouvirmos dizer, também, que é o fim dos tempos, o fim do mundo ou, simplesmente, o fim da picada. Para mim é a época da tristeza.
Somos frutos do nosso tempo e isto, com grande freqüência, afeta a nossa capacidade de ter uma perspectiva histórica em relação ao que somos e à sociedade como um todo. Por isso, quando digo que vivemos um tempo de tristeza, trago comigo a parcialidade da época que me condiciona. É bem possível que outras épocas fossem muito mais tristes e miseráveis que a nossa, porém creio que hoje estamos despertando para a nossa tristeza e isto a torna mais presente, mais palpável.
O trato das emoções é complexo e não somente pelas emoções em si, mas também pela forma como conduzimos o nosso esforço de compreensão. Historicamente, a tradição do pensamento ocidental, século após século, consolidou a sua devoção à razão. Primeiro a razão era um movimento de organização, depois uma predisposição, depois uma faculdade humana e, por último, a essência do ser humano. Não é à toa que filósofos como Nietzsche e Kierkegaard se entregaram à tarefa de desmistificar este autoritarismo racional.
Ao tratar da emoção, temos que cuidar com o fato de que, naturalmente, somos direcionados a interpretá-la de forma dicotômica no ser humano, dentro de uma relação de antagonismo com a razão. Não creio que isto corresponda a nossa realidade. Não creio que haja esta linha clara e precisa que estabeleça domínios opostos e inconciliáveis. Pensemos que, na medida em que a razão alcançou o status de ser reconhecida como o próprio homem, em sua porção mais nobre e elevada, e considerou-se que as emoções nos afetavam de tal forma que nos desencaminhavam, chegou-se com facilidade às paixões e ao seu sentido literal (de passione, em latim, sofrer). Paixão é o que se sofre, o que nos afeta, é algo que não temos controle, que vem de fora para dentro, até o extremo de tê-las como expressão da porção animal do homem.
Esta herança distorce a forma como interpretamos as emoções, aliás, a forma como entendemos a sua interpretação, pois acreditamos que o conhecer, que não é outra coisa senão interpretar a realidade, é fruto de uma atividade racional. Pensamos, então, que as emoções não são interpretadas, apenas acontecem. Dão-se de uma maneira espontânea e interferem negativamente na nossa capacidade de julgamento. Há um engano contundente nesta visão, pois as emoções também são compatibilizadas com o contínuo processo de interpretação que é a vida. Sentimos e a este sentir atribuímos significados particulares e gerais.
Espinosa percebeu, diante da relação intrínseca que há entre o ser humano e o mundo, que era inevitável o fato de que afetamos e somos afetados continuamente. Reprova todos aqueles que colocam as paixões humanas como típicas de uma inclinação inferior. Atesta a indissociabilidade das emoções em relação ao que somos. Por outro lado, reconhece que há paixões (por ele melhor denominadas de afecções) positivas e negativas, reduzindo-as a apenas dois tipos: alegria e tristeza. O amor, o júbilo e a esperança são afecções “alegres”. O ódio, o ressentimento, a frustração e o desespero são afecções “tristes”.
Diz ainda que a essência do ser humano é o esforço de perseverar na existência, portanto gera alegria o que aumenta o nosso poder de perseverar na existência (conatus), gerando tristeza o que diminui este poder. Como Espinosa reconhece que há a interação do homem com o todo, as afecções resultam de “encontros” e a alegria provém de “encontros alegres”. Deste modo, a nossa liberdade se volta para reconhecer esta realidade e buscar incentivar a alegria, através de “encontros” que gerem afecções positivas e aumentem o nosso conatus. O problema aqui é que, na maior parte das vezes, os homens são guiados por percepções confusas e mutiladas da realidade, procurando aumentar o seu conatus em coisas que lhe são externas. É neste sentido que acabamos por buscar a alegria nos tradicionais bens que as sociedades sempre reconheceram como maiores: a riqueza, as honrarias e a concupiscência.
Bergson também dará um papel importante à alegria, como signo engendrado pela natureza para dizer que o homem alcançou o seu destino. Não se pode dizer que ele afirme claramente uma disposição teleológica da alegria, mas sim que esta é a conseqüência e índice que nos mostra que estamos fazendo o que corresponde à natureza intrínseca da vida. Há uma certa proximidade com o conceito aristotélico de felicidade (eudaimonia), na medida em que Aristóteles acreditava que o caminho da felicidade passava pelo desenvolvimento das faculdades humanas, num sentido muito presente em sua filosofia de telos (finalidade, causa final), porém o estagirita deixa pistas de que acredita que a faculdade mais importante do homem é a razão e aí se limita. Sempre entendi este telos como uma necessidade de adequação ao que somos. Imaginava que os pássaros, dotados de asas e da capacidade para voar e presos ao chão, se tivessem consciência suficiente de si mesmos, seriam infelizes.
Voltando a pensar na tristeza, que parece delinear a têmpera de nossos dias, podemos notá-la pelas suas variadas manifestações conhecidas, a saber, a depressão, a angústia, a ansiedade, o medo, a insegurança, a frustração, o desencanto e a desesperança. Creio ser de senso comum que ninguém (ou praticamente ninguém) se sente confortável triste e, ao ser tragado por este sentimento, é natural que busquemos, algumas vezes mais profundamente e em outras menos, suplantá-lo. A cura para esta tristeza epidêmica, no meu entender, quase sempre se volta para regiões distantes da fonte onde o mal é gerado. Soma-se a isso que normalmente confunde-se alegria com prazer e, não há como negar, a sociedade atual atingiu certos níveis de excesso em termos valor concedido ao prazer e às formas de satisfação hedonista. Esta distinção já destacada por Bergson, onde a alegria representa o triunfo da vida e o prazer um mero artifício da natureza para garantir a sua conservação, de forma geral, é muito pouco percebida e discernida.
A satisfação gerada pelo prazer passa a ser identificada como o estado almejado em oposição aos estados de tristeza. É notório, porém, que a satisfação oriunda do prazer possui um caráter superficial e extremamente efêmero. Grande parte da tradição filosófica trabalhou com a escravidão concupiscente derivada de certos prazeres como a gula, a embriaguez e a luxúria. Seria esta escravidão fruto da ânsia por afastar a tristeza de nossas almas? Seja assim ou não, é certo que os prazeres possuem esta propriedade de nos “distrair” de certas questões da vida.
A vida, em si mesma, padece de uma urgência, pois, enquanto pensamos e questionamos, ela está sendo. Por isso nos perguntamos de onde nasce a tristeza que temos e o que fazer para que a alegria se instale em nosso espírito?
Se formos tomar o caminho que considera como válida uma propensão teleológica inerente ao ser humano e condicionante de sua natureza, diríamos que a nossa tristeza advém do fato de que há uma falta de sintonia entre a forma como vivemos e a forma como deveríamos viver. Cumpre, então, definir que aspectos são mais comuns às vivências individuais e coletivas, os traços que marcam, que definem, as sociedades contemporâneas.
Nos deslocando neste sentido, poderíamos tratar da questão dos valores, pois são estes que atuam como referenciais, balizando a construção das escalas que determinam o grau de importância dos diversos objetos que ocupam os nossos pensamentos e ações. São valores comuns, ao longo da história da humanidade, o individualismo, a prosperidade, o reconhecimento público e o máximo de potência pessoal na satisfação dos desejos (normalmente vinculados a prazeres). Poderíamos dizer, também, que a afeição e o contato humano buscariam uma posição aqui, mas me parece que eles se inserem mais como uma necessidade vital do que como algo em que realmente se acredita. Com isso, podemos perceber que pode haver uma séria distinção entre o que admitimos acreditar e o que praticamos de fato. Considero como valores válidos os que realmente condicionam as ações e não aqueles que condicionam somente as aspirações.
Se formos notar esta série de valores preponderantes, notaremos que todos se relacionam com poder. O individualismo se mostra como a propensão de consolidar o poder do indivíduo enquanto tal, diante dos outros e do mundo. A prosperidade é o poder diante, primeiramente, das necessidades de sobrevivência e, depois, de consumar certos desejos. O reconhecimento público representa o poder de ascensão sobre os outros e a afirmação do poder individual. A potência pessoal nada mais é que um desdobramento dos outros.
Há algo que margeia todas estas esferas em que projetamos nossos anseios de poder, a saber, o fato de que não cogitamos que possamos ter algum domínio sobre os nossos impulsos, os nossos desejos propriamente ditos. Então buscamos estender o nosso poder à realidade que nos cerca.
Estando em uma condição em que nos percebemos, ainda que implicitamente, como indivíduos que não são de forma absoluta, senhores de si mesmo e muito menos senhores de uma realidade em que, como diz Heidegger, fomos atirados, que poderia nos restar senão uma profunda intuição de impotência, que tenta buscar a sua cura na posse de formas periféricas de poder que, não suprindo esta sensação de incapacidade, pelo menos a diluem em uma série de ilusões?
Se retornarmos a Espinosa, veremos que, na busca dos valores vigentes, considerados fundamentais, só podemos encontrar a diminuição do nosso poder de persistir na existência, só teremos encontros motivadores de afecções tristes e, conseqüentemente, afastaremos de nós a alegria.
As correntes que aprisionam o nosso espírito não são grossas e tangíveis, nem por isso deixam de ser fortes e resistentes. Estamos atados aos conceitos que herdamos e que reconstruímos em nós mesmos, conceitos estes que determinam a forma como entendemos e conduzimos a nossa existência.
A alegria se mostra, segundo Bergson, como fruto do esforço empreendido para materializar o pensamento, sendo o influxo deste que traz vida e movimento para a condição estática da matéria. É na criação contínua, no esforço de introjetar vida ao que é naturalmente inerte, que encontramos alegria. Se o esforço de criação traz a alegria, a maior criação é a de si por si, ou seja, aquela que envolve o “engrandecimento da personalidade”. Em relação a isto, aqueles homens de moral mais elevada, que situam a sua existência em um nível de contínua criação, onde “o movimento vital não encontra obstáculos”, representam um ponto mais alto de evolução: “Contudo, criador por excelência é aquele cuja ação, ela própria intensa, é capaz de intensificar também a ação dos outros homens, e generosamente iluminar núcleos de generosidade.” Com isso, ele nos convida a observar a vida daqueles que se destacam pela sua grandeza moral. “Para penetrar nos mistérios das profundezas, é preciso por vezes visar aos cimos”.
Não seria esta uma maneira distinta de passar uma mesma mensagem que, vinda de diversos lugares do mundo, de diversas épocas, de diversos homens, fala em amor, compreensão, tolerância, solidariedade, desapego e humildade? Não seria a contínua afirmação de que as coisas que, normalmente, parecem possuir mais valor e a que dedicamos todo o nosso esforço são aquelas que nos conduzem à tristeza? Não seria a afirmação da possibilidade de vivermos uma vida “alegre”, algo muito superior a nossa tradicional aspiração por felicidade? Não sei a resposta, mas que vale a pena considerar isso, certamente vale!

20 de out. de 2005

Devaneios...

Nietzsche diz que o homem é uma corda estendida entre o animal e o super-homem, sobre um abismo. Ninguém atestaria objetivamente se há uma veracidade implícita nesta afirmação e nem precisaria isto, pois qualquer um que se debruce para contemplar a si mesmo com atenção, acrescentaria ainda que a corda é bem fina e balança.
Poderíamos discutir acerca da nossa natureza, se há um caminho de evolução ou não, acerca de nossa origem e do nosso fim, mas não precisaríamos discutir acerca do fato de que aquilo que entendemos como sendo nós mesmos é algo delgado e fugaz. Não temos a rigidez que percebemos na rocha, não temos a sua definição e seu peso.
Nosso corpo pode parecer suficientemente sólido para que possamos acreditar nele sem reservas, mas aquilo que o percebe, que o distingue e que afirma a sua existência é uma consciência que se agarra a esta pretensa solidez para não ser tragada pelos ventos da incerteza.
Há momentos em que conseguimos perceber que a existência traz consigo o deslocamento de quantidades enormes de energia, de vitalidade, energias que, por vezes, nos engolem, nos devastam, pois elas acontecem em nós sem o nosso conhecimento, sem o nosso consentimento, sem a nossa compreensão. Entretanto, estes movimentos são intrínsecos à vida, aliás, são a vida propriamente dita, sendo que eles nos acordam do torpor com que a matéria e sua estagnação contaminam o viver, propriamente dito.
Não há muitas opções, é preciso caminhar nesta fina e balouçante corda, pois é isto que aquilo que somos exige de nós. E o abismo? Ele que fique onde está, porque o meu caminho é aqui.

18 de out. de 2005

Esperança

Ter esperança é um saber esperar diferente.
É esperar, sabendo que, se esperar direitinho, vai valer a pena esperar.
Ter esperança é botar um pé naquele mundo onde habitam os sonhos.
Ter esperança é trocar uma esperança por outra, prá nunca dizer que não há esperança.
Ter esperança é fechar os olhos quando se beija, esperando que o outro também faça.
Ter esperança é olhar diferente pro mundo, vendo o que quase não se vê.
Ter esperança é apagar a luz e não ter medo do escuro.
Ter esperança é só esperar?
Não, é o saber esperar diferente.
É botar os tijolos, um ao lado do outro, direitinho, porque no final virá a casa.
É esperar a chuva passar, porque depois vem o sol.
É esperar a noite passar, porque depois vem o dia.
É fazer o dia ser melhor por acreditar que o dia pode ser melhor.
Ter esperança é botar a cara para apanhar, porque só caem os que desanimam.
Ter esperança é ser forte de tanto não ligar para a própria fraqueza.
Ter esperança é viver a vida e não sofrer a vida.
Ter esperança é não olhar pro fim, mas pro caminho.
Ter esperança é deixar explodir o peito e falar o que se sente.
Ter esperança é amar e achar que isso basta.
Ter esperança é acreditar.

Ter esperança é ter esperança.

Devaneios...

Há um vento frio soprando do sul... Sempre há...
Queremos calor, insólito calor que envolve, protege e deixa crescer.
Lembro do filme A Encruzilhada...
Willie Brown de volta ao local onde houvera, muitos anos antes, feito um pacto com o diabo, tal e qual conta o mito sobre Robert Johnson.
O que pretendia agora Willie Brown? Simplesmente desfazer o pacto.
Obviamente, o contratado apresenta um papel onde consta a assinatura do contratante e fala calmamente que, segundo aquele papel, o acordo ainda estava valendo.
Willie Brown resmunga, reclama, protesta, nada foi como ele queria. Não ficara rico, estava velho e doente. É, nada tinha sido como ele queria...
O diabo simplesmente responde:
- Willie Brown, nada nunca é do jeito que nós queremos!
(Por que sempre é o diabo que tem mais bom senso nas histórias?)
Ele tinha razão, toda a razão...
Nada nunca é do jeito que queremos! Nada nunca acontece no tempo que esperamos. Ou aquilo que desejamos não acontece, ou, se acontece, não é como tínhamos desejado. Faz chuva quando queremos sol, faz sol quando precisamos de chuva. Estamos rodeados quando queremos ficar sós, estamos sós quando precisamos de alguém. Coisa maluca, mas a vida é assim...
Isto até poderia ser um fato que nos desanimasse, se não fosse por um pequeno detalhe...
Acreditamos demais nos nossos desejos!
Penso que uma das coisas que mais nos enganam são justamente os nossos desejos. O problema não está no impulso que nos arremessa em direção às coisas, porque isto é próprio da vida, este movimento, esta intenção. O problema sempre esteve na forma como compreendemos este impulso. Pouco entendimento temos de nós mesmos e mais do que reclamar da oscilação do mundo frente aos nossos desejos, deveríamos nos quedar inquietos com as oscilações de nossos desejos diante do mundo.
Procuramos vida, procuramos alegria, procuramos felicidade, mas com muita freqüência onde elas não estão...

Nada nunca é do jeito que queremos! Ainda bem!

13 de out. de 2005

Inquietude

Inquietas são as águas dos mares, dos rios e daqueles que choram
Inquietos são os ventos que envolvem as manhãs frias de agosto
Inquietos são os corações que amam, os corações que esperam
Inquietas são as horas sem sono, são as memórias sem rosto

Inquieta é a alma que, sendo pouca pra si, aguarda um encontro
Inquieto é o beijo que, com fúria incontida, espera tragar o outro
Inquieta é a tua mão que em nada repousa e se sacode no ar
Inquieto é o desejo que não há volúpia que consiga saciar

Inquietos são os que vivem. Inquietos são os poetas
Inquietas são as súplicas aos céus, entoadas como uma canção
Inquieta é a forma estranha e sutil com que me afetas

Inquieto é hoje e será amanhã o meu coração

12 de out. de 2005

Falta...

Às vezes parece que tudo é falta na vida.
Falta tempo.
Falta dinheiro.
Falta amor.
Falta sinceridade.
Falta afeto.
Falta confiança.
Falta uma pessoa...
Faltou luz ontem.
Faltou gás com o feijão cozinhando.
Faltou pouco para o nosso time ganhar.
Faltou fôlego no último pique.
Faltou água embaixo do chuveiro.
Faltou coragem para dar aquele salto.
Faltou boa vontade com aquele chato.
Faltou solidariedade com quem estava do lado.
Faltou humildade.
Faltou um sorriso.
Faltou paciência.
Faltou tolerância.
Faltou esperança...
Faltou perceber que não se precisa de tudo que parece fazer falta.
Faltou perceber que há coisas que fazem uma falta...

7 de out. de 2005

Penélope

A mesma dedicação empregada durante o dia em trançar - com uma elegância, precisão e beleza de acender a inveja da própria Aracne – a tapeçaria que significava abandonar o seu Odisseu e a obrigação de escolher como marido um dos fanfarrões oportunistas que a assediavam, como abutres à carniça; Penélope empregava à noite, desfazendo o trabalho diurno, na esperança de ganhar tempo suficiente para o retorno de seu amado, ausência que já se estendera por tantos anos.
Pragmás, amiga de longa data, tanto quanto os energúmenos que se embriagavam no salão embaixo, também não concedia descanso à pobre Penélope, mulher que o próprio tempo se recusara a roubar a beleza, em respeito a sua firmeza de caráter e virtude:
- Mulher, o que tem em teus miolos? Por que te dedicas incansavelmente a estas lides de Sísifo, se bem poderias viver de forma mais tranqüila, aproveitando melhor a vida, que bem o sabes é curta e recheada de infortúnios? Tu, eleita dentre as eleitas de Ítaca, por que - não querendo servir a outro homem que o teu Odisseu, que nem sabes se está vivo ou morto, ou se deliciando nos braços de alguma princesa exótica em portos que sequer imaginas existir – insistes em servir somente a tua teimosia e veleidade? Por que viver como uma escrava inútil, que sobrevive graças à bondade de seus senhores, e não como a rainha que és de fato?
- Cara amiga, não compreendo porque te incomodas tanto esta situação? Na verdade, o mundo que os homens construíram, tantas vezes nos cobra, a nós mulheres, pesados tributos, mas o que nos restaria se permitíssemos que eles nos tomassem, depois do corpo, da liberdade e da vontade, até mesmo o nosso espírito?
- Espírito!? Que fazes com o teu espírito!? Matas a tua fome? Sacias a tua sede? Satisfaz os teus desejos? Te abrigas das chuvas e dos animais? És reconhecida e invejada pelos que te rodeiam, graças ao teu espírito?
- Tens razão... Todavia, é ele que me permite ser o que sou. Comemos para quê? Comemos para viver. Muitas vezes haveremos de comer por prazer e não creio que haja um mal tão grande nisso, se esse hábito não for uma escravidão que nos transforme em fantasmas estúpidos e bestiais, glutões concupiscentes que tentam preencher o vazio que trazem em seus corações com as iguarias que consomem pela boca. Não é diferente com a bebida ou outros prazeres da vida que, tanto quanto podem afirmar que estamos vivos, podem também nos tornar meros simulacros de homens e mulheres. Para quê nos empenhamos em comer, beber, nos abrigar ou sentir prazer, senão para nos mantermos vivos? Como poderia eu, então, permanecer viva se queres que, antes de tudo, mate o meu espírito? De que valeria sustentar um corpo ou uma vontade de algo que já se perdeu por não possuir coragem suficiente para ser o que é?
- Não sei aonde pretendes chegar com tais divagações que pouco combinam com uma mulher e que em nada podem te ajudar. Esquece tais delírios que devem ser fruto da combinação perigosa de uma mulher com fogo e da falta de um homem em sua cama. És Penélope, rainha de Ítaca, não há como ser de outra forma até que sejas chamada ao reino de Hades. Por que guardas tanta fidelidade ao teu esposo, que sequer deves lembrar a face?
- Não sei se te entendo bem...
- Eu é que não te entendo!
- Falas da fidelidade ao meu esposo e não nego que assim o seja, mas há uma fidelidade maior que esta e que me é mais cara.
- Que fidelidade seria esta?!
- Fidelidade ao que sou! Sou aquela de vontade firme e crença inabalável. Sou aquela que, determinada a viver só antes que sem o seu esposo, aceita ser uma mendiga, mas não uma rainha corrompida. É isto que sou, é assim que me reconheço. Fazer diferente do que faço seria destruir a Penélope e me transformar em uma outra coisa menos digna de mim mesma. Não me considero melhor nem pior que qualquer outro ser vivente. Na condição de rainha não cultivo qualquer vaidade, orgulho ou egoísmo, mesmo assim, os deuses que me perdoem, me agrada ser da forma que sou e não estou preparada para ser outra coisa. Não creio que, se seguisse este caminho, aparentemente, fácil que me ofereces – reconheço que pensando no meu bem – eu tornaria os meus dias melhores. Antes disso, querendo viver de uma forma cômoda, expulsaria a vida que há em mim e que faz com que me considere bela e viva.
Esta foi a última gota d’água, Pragmás saiu resmungando:
- Mulher maluca esta...

4 de out. de 2005

...

"Por que, em vossos pensamentos, temeis tanto a morte se, em vossa curta existência, agis como se temêsseis a vida?"

3 de out. de 2005

Devaneios...

Entendo com relativa facilidade o fato de que todos queremos, ou acreditamos querer, ser felizes.
Entendo com mais facilidade o fato de que, na maioria das vezes, não possuímos uma idéia definida do que venha a ser felicidade.
Entendo que a palavra felicidade talvez não expresse aquilo que queremos dizer quando a usamos, mas entendo que ela é só uma palavra.
Entendo que sofremos, quase sempre, por nós mesmos. Somos vítimas das nossas fraquezas, do nosso orgulho, do nosso egoísmo.
Entendo que complicamos as nossas vidas com uma intrincada teia de desejos e quereres que servem para nos distrair do fato de que nos sentimos pequenos diante do mundo e da nossa existência.
Entendo que está em nós o poder para tornar tudo mais simples, belo e puro.

Só não entendo o porquê de não fazermos isso...

30 de set. de 2005

Artigo - Rascunhos

"Só vejo um meio de saber até onde podemos ir: é colocar-se em marcha." - Henri Bergson

Tentei me esmerar, sempre, em produzir o bem acabado. A coisa pronta, finalizada. Se me perguntassem, hoje, o que foi possível fazer seguindo tais anseios e eu respondesse com alguma franqueza, ainda que envergonhado, teria de dizer que quase nada.
Tememos a contestação, a crítica, a indiferença, a vaia e o desprezo, quando deveríamos temer a inércia. Todo o caminho tem os seus percalços, cobra os seus tributos, exige uma atitude, mesmo assim, para seguí-lo, é preciso estar nele, não na imaginação, não na antecipação, não na ansiedade, mas somente nos passos, no andar.
Nos preocupamos demasiadamente com o destino de nossas andanças, com aonde vamos chegar. Simplesmente esquecemos que só há um destino, comum a todos, para aquilo que chamamos vida, a saber, a morte. Se tivermos, em algum momento, dúvidas acerca do local para onde os nossos passos nos levarão, é certo que não precisamos duvidar do fato de que há esta escala obrigatória para todos.
Ao pensar seriamente na morte, notaremos que ela não passa de uma abstração. Não trazemos conosco uma experiência que possa servir de referencial para que estabeleçamos uma idéia clara do que representa. O máximo que poderíamos fazer seria esboçar uma relação negativa com a vida, fazendo isso, seríamos obrigados a defini-la, transformando-a em uma caricatura de si mesma.
Para um materialista, que vê no término da vida o respectivo fim da consciência individual, pensar na morte seria pensar na condição em que não há pensamentos e, obviamente, o fruto desta reflexão só pode produzir idéias difusas e incoerentes consigo mesmas, portanto vazias e sem sentido.
Por outro lado, para um espiritualista, que não reconhece esta conotação de término da consciência individual, a morte não existe e pensar nela não pode produzir resultado muito distinto da inocuidade de uma reflexão materialista, conforme dito acima.
Poderíamos concluir, então, que a idéia do fim, embora assombre a nossa existência, possui pouca utilidade, não conduzindo a qualquer forma de esclarecimento, senão ao medo e a fantasias que só servem para anular aquilo que é real: a vida.
Embora tenhamos a impressão de, ao tratar deste assunto, estarmos a falar de uma intersecção que nos nivela a todos em um mesmo ponto de finitude existencial, do exercício de refletir acerca da morte em si, nada podemos extrair.
Concebendo as coisas deste modo, a vida pouco se apresenta como a realização de alguma meta, sendo mais uma caminhada. Importam nela os passos que se dão, o ritmo que se anda, o caminho que se escolhe, a paisagem que a emoldura e o fluxo que a acompanha. Isto mesmo, vida é fluxo, continuidade, é em si e no devir. É um rascunho.
Diante disso, como pensarmos em obras acabadas? A obra acabada é a idéia morta que teve cessada a sua existência. Alguém disse que o artista não finaliza a sua obra, a abandona. Isto só acontece porque nós não podemos completar as coisas senão destruindo-as. A marca da vida é a existência de possibilidades. Findas as possibilidades, finda-se a vida.
Aquele que afirma a si mesmo não possuir possibilidades, acreditando estar preso a amarras que o impedem de ser e pensar de outra forma, sem o perceber, coloca-se naquele beco escuro que é o altar aonde são feitas as pregações em defesa de tudo o que é não-vida.

27 de set. de 2005

As crianças...

Menina de 5 anos. Passa alguns segundos calada...
De repente solta a frase:
- Pai, tudo é pensamento, né?
O pai foi surpreendido por aquela máxima, vinda de lábios tão pequenos e, ao mesmo tempo, tão profunda. Entretanto, estranhou mais a ressonância inesperada, pois as suas reflexões não passavam muito distante dali.
- É filha, tudo é pensamento...
Sobrou ao pai o incômodo de saber que a “educação” e o convívio social fariam de tudo para esmagar esta percepção originária, tão lúcida e pura.

23 de set. de 2005

Artigo - Daquilo que somos

Não creio que possamos almejar muita coisa na vida. Todo e qualquer sonho grandioso para o homem, quando colocado diante da imensidão do todo onde ele está inserido, parece pequeno e sem graça. Muitas vezes nos sobra somente o tamanho da nossa finitude. Curiosamente, é quando abandonamos os delírios de grandeza; que parecem mais a expressão da revolta que nutrimos em relação a uma intuição de impotência que não nos abandona do que a certeza de que somos capazes de feitos significativos; é que abrimos o caminho para nos tornarmos grandes.
A arrogância humana só é possível se ignorarmos, deliberadamente, a nossa pequenez. Diminuir o tamanho do universo, aumentar a importância de nossas idiossincrasias, superestimar o nosso conhecimento, entre outras coisas, são alguns dos expedientes que utilizamos para elevar a nossa estatura e que, ao mesmo tempo, turvam a nossa visão, facilitando a tarefa a qual nos dedicamos com tanto empenho e esmero: nos tornarmos infelizes. Nos sentimos, tantas vezes, miseráveis, porque temos uma obsessão por não nos sentirmos miseráveis. Nos falta lucidez, nos falta discernimento.
Nesta ânsia de não nos sentirmos pequenos, geramos, cada qual a sua maneira, as ilusões que nos fornecerão o sentido, o propósito, sem os quais não somos nada. São estas ilusões que servirão de esteio para a interpretação dos nossos desejos, das nossas aspirações e, acima de tudo, de nosso vazio. Sim, não há como negar, carregamos conosco um vazio. Não nos assustemos com os monstros, os terrores. A nossa maior fobia é o vazio, tanto que sequer falamos dele, sequer pensamos nele, sequer o reconhecemos, com medo de, ao sussurrar seu nome, ao evocar a sua presença, ele apareça e nos devore de tal forma que venhamos a desaparecer. Isto, entretanto, jamais evitou que nos assombrasse os sonhos e a realidade, que nos espreitasse por entre as sombras que se produzem nas nossas dúvidas. O esconjuro de tal temor parece ser um só, a saber, o preenchimento e, aqui, o que nos falta em qualidade, sobra em quantidade.
Não somos algo estático. Heidegger explicita com lucidez que o ser humano (Dasein) é um ente que se diferencia dos outros entes, pois ele sendo, "está em jogo o seu próprio ser". Não somos algo que possa ser esclarecido por um é. Podemos dizer que a cadeira é azul, que a pedra é dura, que a mesa é branca. O homem, no ato de ser o que entendemos que ele é, está diante da possibilidade de ser de outra forma. Não podemos nos definir como objetos, somos um trânsito. É possível que, aceitando esta condição em nós mesmos, percebamos que a própria realidade partilha deste contínuo. Espinosa define que a essência do ser humano é "o esforço de perseverar na existência". Esta afirmação não determina um é, determina um modo de ser. Assim, percebemos o esforço dos filósofos na tentativa de capturar a intuição que possuem do movimento, da continuidade da existência humana.
Sob esta perspectiva, parece que, mais autênticos que nossas aspirações, nossos projetos, nossas crenças, nossos objetivos, são os movimentos de nosso espírito. Os primeiros nada mais são que as interpretações distorcidas (Espinosa dirá "percepções mutiladas e confusas") dos segundos.
Projetamos o que pretendemos "ser" como se pudéssemos traçar linhas de chegada. Ignoramos a natureza própria e dinâmica de nossa condição existencial. Transformamos o movimento em imagens congeladas, estáticas (Bergson percebeu isto de forma clara e inequívoca). Transformamos o fluxo da vida em fotografias de fatos. Não vivemos, estabelecemos marcos.
Falamos do que queremos como se soubéssemos o que fosse o querer. Referindo mais uma vez a Espinosa, ele diz que não desejamos as coisas porque elas sejam boas, acreditamos que elas sejam boas porque as desejamos. No ato de interpretar o movimento interno e lhe dar significado, transformando-o em desejo, também promovemos a sua paralisação. Quero um carro novo. Quero uma casa nova. Quero um computador. Quero comprar roupas. Quero um amor. Quero ser médico. Quero ser engenheiro. Quero ser advogado. Pontos aonde queremos chegar e, chegando neles, permanece o vazio, permanece a incongruência.
Não podemos ser algo desejando, ansiando, projetando, planejando. Somos somente de uma forma: sendo. Somos quando damos vazão ao movimento próprio da nossa natureza. O que somos não é um destino, é algo que vivenciamos, é a existência propriamente dita. Para tal, é preciso assumir, simplesmente, ser o que é. Um poeta não se diz poeta, não assina como poeta, ele faz poesia, ele vê o mundo com olhos de poeta. Um médico não é médico por dizer que é ou por usar jaleco, ele simplesmente pratica a medicina. Ele se assume, num dado momento, como médico, podendo, de uma hora para outra, ser outra coisa. Não somos pelas etiquetas, não somos pelo que queremos, somos pelo que fazemos, somos pela forma como vivemos.
Se há algo que deveríamos nos ocupar em fazer é retirar as amarras, remover os entulhos que obstruem o caminho daquilo que somos, para que, simplesmente, venhamos a ser. Só temos uma obrigação na vida, nos assumirmos, mas como isto é difícil!

22 de set. de 2005

Lições...

Mestre e aluno. Um em frente ao outro. O aluno solfejava todo atrapalhado a escala de dó no modo dórico (ele sempre teve dificuldades com solfejo).
Pausa para descanso, o aluno pergunta:
- Há toda uma técnica para cantar, não há?
- Claro que há! – responde o mestre.
- É claro que devemos estudá-la, não é?
- Se quiseres cantar bem, tens de aprendê-la.
- Tudo o que aprendemos, mesmo que a prática contínua nos permita executar à perfeição o que nos for solicitado, não pode simplesmente se esvaecer, diante de uma platéia, consumido pela comoção que os sentimento provocam.
- É claro que sim! Não aprendeste que, no canto, o instrumento é o teu corpo? Não sabes que, quando estás nervoso, inquieto, angustiado, a tua musculatura se enrijece, a tua postura se altera, a tua concentração se perde? Nenhuma técnica do mundo permite a um intérprete executar com perfeição qualquer peça se o seu instrumento não está em adequadas condições para produzir música. Imagine um violino quebrado ou desafinado. Imagine um piano sem cordas. De que adianta a técnica do violinista ou do pianista em situações assim?
- Então, o que fazer quando o que nos falta não é o conhecimento, mas o controle para utilizá-lo quando necessitamos?
- Cada qual escolhe a maneira que melhor lhe aprouver para superar este obstáculo. Posso lhe dizer, todavia, que, para mim, este é o momento da fantasia.
- Momento da fantasia?
- Sim. O momento da fantasia é aquele momento em que suplantas o comum, o natural e assumes definitivamente que ele te pertence. Não importa o teu tamanho, só conseguirás ser grande se te pensares como grande, só conseguirás ser sublime se te pensares como sublime. Ali construirás a fantasia daquilo que és e, se tiveres suficiente convicção e empenho, te tornarás ela.

Naquele dia, o aluno saiu da aula pensativo, pois entendeu que o sofrimento do corpo e do espírito não desafina somente o canto, desafina a vida.

21 de set. de 2005

Espaços que não se preenchem...

O amor nunca vivido
A sede não saciada
O gosto nunca sentido
A vida desperdiçada

A perda de quem partiu cedo
A ausência que é como um castigo
Ou trazer sempre consigo
A angústia, a ansiedade e o medo

A face já esquecida
O sonho abandonado
A vontade adormecida

O beijo nunca beijado

18 de set. de 2005

Artigo - Profissão

De tempos em tempos eu me estranho com alguma palavra. A bola da vez é profissão.
Não sei se isto ocorre de forma espontânea e casual ou se é porque esta palavra vive dançando de forma bem desengonçada na boca de todo o tipo de pessoa, em todo o tipo de circunstância, a toda hora.
No sentido mais simples possível, profissão é ato ou efeito de professar. Por sua vez, professar significa reconhecer, confessar publicamente, ensinar, abraçar, seguir e, também, exercer. Na sua origem etimológica, "declarar diante de alguém".
Entendo que o sentido de profissão aparece na integração de duas perspectivas. Na primeira, a forma imediata remete ao público, isto é, a uma manifestação de cunho ostensivo onde o indivíduo se revela publicamente como alguém que segue um determinado caminho, possui uma determinada convicção, pratica algo, adota uma crença. Todavia, para que haja esta manifestação, ela deve ocorrer, antes, na interioridade e este aspecto representa o segundo âmbito conceitual do termo. Para que eu possa professar uma crença, necessito internalizá-la antes. A convicção, por menor que seja o radicalismo de sua fundamentação (entendam radicalismo no sentido próprio da palavra, daquilo que se refere às raízes) , é algo que se projeta a partir da interioridade humana. Assim sendo, o professar é algo que nasce de uma posição própria, individual, e se propaga para o coletivo como um ato público de afirmação.
Em relação a isso, muitos dirão que é comum as pessoas trazerem consigo convicções que não são mais do que subproduto de convicções alheias.
Respondo a este argumento da seguinte maneira: pensemos em um objeto que os nossos olhos já viram, algo simples como uma bola. Uma bola vermelha, com diâmetro não superior a 30 centímetros. Imaginemos agora que estamos próximos a alguém e lhe descrevemos o que vimos. O objeto jamais estará nos nossos olhos, ou na nossa imagem mental ou na linguagem que usamos para descrevê-lo. E, ainda assim, estará lá. Este processo não pode ser executado sem que, de uma forma mais ou menos superficial, o objeto em questão seja internalizado. Não é possível exprimir a bola sem fazer com que ela passe pela nossa consciência. Ao descrevê-la, não a estaremos transmitindo diretamente, senão a consequência de a termos absorvido e compreendido de uma dada maneira, assim como, a nossa maior ou menor capacidade lingüística para fazer a descrição. Se isto acontece com um objeto aparentemente simples e tangível como a bola, o que se dizer das idéias. Não é possível que elas entrem e saiam da nossa mente sem nos afetarem ou serem afetadas por nós.
Este processo de internalização é interessante, na medida em que podemos repensar os sentidos usuais que são dados às palavras profissão e profissional, diante do exposto acima. Entendemos usualmente profissão como uma atividade laboral específica, que envolve o domínio de certas técnicas e respectivo reconhecimento social, sendo profissional aquele que reúne as condições para exercer tal atividade e é reconhecido por isso.
Comparando a noção anterior de profissão com esta última, notaremos que elas praticamente se equiparam no aspecto público, mas se distanciam quando pensamos na perspectiva da convicção individual. A técnica, para ser aprendida, não exige como pré-requisito a aceitação daquilo que ela traz consigo como desdobramentos. Um soldado, em treinamento, pode aprender a usar seu fuzil com razoável destreza, isto, porém, não é garantia de que ele tenha convicção da possibilidade de usar este conhecimento para tirar a vida de alguém.
Chegamos agora, ao final, onde reconhecemos que o termo profissão não pode ser aplicado de forma esclarecedora a todo o tipo de prática considerada dentro do domínio de uma dada técnica reconhecida socialmente.
Tomando como exemplo um político, poderíamos nos perguntar que idéia fazemos do que concerne, essencialmente, à atividade do político? Falo essencialmente, porque acredito que somente nesta essencialidade podemos escapulir do caráter superficial da técnica e encontrarmos um conteúdo passível de convicção. Não importa que a prática política que nos parece mais comum se conduza por caminhos que consideramos reprováveis. De modo geral, acreditamos que o político é alguém que deve (ou deveria) trabalhar pelo bem comum e esta é a essencialidade desta atividade, isto é, o bem comum. Se um político, no exercício da atividade política, tem como finalidade a vantagem pessoal e não o bem comum, não podemos dizer que ele professa, ou traz consigo a convicção de ser político, mas sim que ele professa o oportunismo, sendo esta a sua profissão. De forma similar, o médico teria, na essencialidade de sua atividade, o encargo de se ocupar do bem-estar da pessoa humana. Se este se enreda em um caminho de ganância, o que professa é justamente a ganância e não o bem-estar de seus pacientes. Que nome poderíamos dar a esta prática, até então chamada de profissional, que traz desvinculadas na sua operosidade a técnica e aquilo que consideramos sua finalidade essencial, justificadora de sua existência? Eu chamaria de ofício, mas creio que outros termos são possíveis.
Colocada a questão desta forma, nos caberia indagar o que, então, professamos nós, na essencialidade de nossos gestos e palavras. Não há como negar, retirado todo o entulho que representam os ornamentos que trazemos para maquiar a visão do que somos e fazemos, sobrará somente o autêntico e o real. Quem tem coragem de contemplar isto com a vista nua?

13 de set. de 2005

O Choro

Apanhou uma garrafa plástica de água mineral, daquelas grandes, de 5 litros. Uma caixa de chá de camomila (dizem que chá de verdade só se for de camelia sinensis, o restante são infusões, mas, se eu escrevesse assim, ninguém iria entender). Foi ao caixa para pagar as mercadorias.
Uma mulher atendia no caixa, outra conversava com ela. Não ouviu a conversa. Pareceu ter visto, meio que de soslaio, que a do caixa estava com lágrimas no rosto (não somente nos olhos). Não deu muita bola, a toda hora há alguém chorando ou sofrendo em algum lugar.
Quando se aproximou do caixa notou que era choro mesmo. A mulher que estava sendo atendida foi embora e restaram somente os dois: a chorosa e o indiferente (era um mercado pequeno).
- Não sei porque me acontece isso, me dá essa vontade chorar!
Silêncio.
- Começa assim, do nada! Não consigo evitar!
- Chorar é bom, faz bem. - falou o cliente na falta de algo melhor.
- É, mas não assim, na frente dos outros. Isso que eu tô tomando "floxetina".
- Todas as pessoas têm seus dramas.
Pagou a mulher e partiu. Ficou apenas perplexo com o fato de que, diante da expressão de angústia alheia, não soube o que dizer ou fazer. Todos têm seus dramas, mas, para quem sofre na pele, o seu drama sempre é o maior do mundo.

Devaneios...

Manhã fria, muito fria. Ao contrário da maioria, o frio ainda me atrai. Dizem que os escorpianos têm um gosto especial por dias cinzentos e nevoados. No meu caso, há um fundo de verdade nisso.
Muitos anos atrás, quando era um caminhante solitário, atravessava a cidade, perdido em devaneios, andando e andando. Gostava de sentir o vento frio batendo no rosto. Gostava de ver as árvores desfolhadas, mas vivas. Sinto falta de não fazer mais isso com freqüência.
Como disse outras vezes, sempre fui um pouco (ou muito) melancólico e nada combina melhor com a melancolia do que o outono e o inverno.
Este gosto pela poesia do frio talvez fosse algo de gaúcho, talvez das raízes européias ou, quem sabe, de uma vida passada. Entendia o meu jeito calado, introspectivo, olhar perdido no horizonte, como manifestação de uma nostalgia pelo antigo continente. Descobri um dia, porém, que Borges colocara o mesmo olhar nos olhos dos peões que miravam o horizonte dos pampas.
Mais próximo de mim, Vitor Ramil desenhou este sentimento em música e me fez ver o quanto, sem ser regionalista, estava entranhado nesta terra.
Descobri a minha natureza terceiro-mundista, o fato de viver abaixo do Equador e vi que isso era uma benção. Havia, afinal, cura para a nossa arrogância caucasiana.
A superioridade civilizada do primeiro mundo é uma falácia, recoberta com grossas camadas de verniz. Ela só pode ser sustentada com a impaciência que temos em provar que somos inferiores e indignos. Mesmo assim, não podemos jamais esquecer que não temos feito a nossa parte...

11 de set. de 2005

Devaneios...

Costumava ter uma memória prodigiosa e confiava nela como jamais confiei em ninguém (aliás, essa coisa de confiar, com relação ao que penso, renderia quilômetros de reflexões, ou uma tese). Tanto que, no tempo em que eu acreditava estar predestinado a ser um grande músico e compositor, escrevia as letras das músicas, mas jamais anotava os acordes, as linhas harmônicas e melódicas, a minha memória me sustentava.
Como já não me abalava mais com a instabilidade e conseqüente infidelidade das pessoas, a vida achou por bem me pregar mais uma peça e me mostrou que a memória também pode ser dolorosamente infiel.
É claro que sempre houveram coisas que faziam tropeçar a minha capacidade de lembrar. Sempre tive dificuldades para lembrar nomes, às vezes fisionomias e, quase sempre, parentescos. Como memória também tem haver com interesse, temo que esta dificuldade estivesse atrelada a pouco me importar com estas coisas, pois sempre acreditei que, por trás destas legendas, havia uma autenticidade, uma pureza, algo que melhor definia o ser humano que as etiquetas habituais. Nunca, jamais, esqueci os gestos, as atitudes. Com o tempo aprendi a perdoar e a desconsiderar, mas não a esquecer.

Porém, hoje, aquela memória instrumental que utilizamos para estocar milhões de futilidades está patinando. Talvez ela nunca tenha alterado a sua capacidade, como um hard disk de computador. Quem sabe fui eu que a preenchi com um número demasiadamente grande de lembranças. Guardei muitas pequenas imagens, sons e odores que acabaram por embaralhar o resto.
Penso, em alguns momentos, que é na lembrança do passado que imprimimos movimento ao presente e assumimos com inteireza aquilo que somos. Ou talvez isto seja apenas mais um dos meus devaneios, quem sabe?

9 de set. de 2005

Artigo - Os Vícios

Trabalhei em uma empresa que estava em processo de falência. Durante alguns meses, antes de finalmente encerrar as suas atividades, ela não produziu nem pagou os salários, mesmo assim, os funcionários compareciam todos os dias, cumprindo religiosamente os horários. Ali ficavam, disfarçando, buscando o que fazer, esperando...
É natural que, nestas circunstâncias, haja um sentimento generalizado de insegurança. A maior parte das pessoas trabalha por necessidade e não por prazer. O sacrifício, senão a submissão diária, é parte do preço da sobrevivência. Poucas vezes pensamos nisto, mas não precisamos nos esforçar para perceber que cada qual traz consigo um drama, uma amargura que é mal ou bem resolvida, dependendo disso a qualidade e a quantidade dos sorrisos que oferecemos àqueles que compartilham de nossa caminhada. Naquele momento, a apreensão era por não saber como pagar a luz que já havia sido cortada, a água que ainda iria ser e, principalmente, como alimentar os que dependiam do dinheiro que não iria chegar.
As misérias humanas que realmente dóem não são ligadas a nada de pretensamente grandioso. Muitas vezes acreditamos que a frustração do atleta que ficou com o segundo lugar, do time que perdeu a final na frente de sua torcida, do candidato derrotado nas eleições, de não ter passado no vestibular, de ter tropeçado e caído na cerimônia de casamento ou de não ter passado de ano, são os maiores sofrimentos a que podemos ser submetidos. O que representam esses reveses diante da dor que acomete aquele que se vê pequeno, insignificante, despido da dignidade e da possibilidade de se conceder algum valor, por se ver reduzido à condição de incapaz para prover o sustento de sua família. Mesmo assim, os funcionários compareciam, menos por disciplina e fidelidade que por não saberem o que fazer e para onde ir. A grande maioria estava suficientemente domesticada para aceitar que, assim como não seriam mais alimentados, não eram mais subordinados a uma ordem que há bem pouco regulava as suas vidas.
Alguém que viveu passando a maior parte do tempo abaixado, estando aprisionado em uma casa demasiadamente pequena, ficará com as costas curvadas de tal forma que lhe impedirão de andar ereto. Igualmente, nós estávamos deformados para pensar e agir, como se ainda estivéssemos presos às invisíveis amarras do considerado conveniente e seguro. Percebo que tanto quanto nos ligamos às nossas rotinas, nos ligamos às nossas insatisfações, frustrações e medos, porque, como nos acompanharam ao longo do tempo, fazem parte daquilo que entendemos ser a vida, sendo difícil conduzir o pensamento por outros caminhos que não os já conhecidos.
Muitas são as prisões possíveis para um ser humano, porém acredito que a mais comum, persistente, dissimulada e deprimente é aquela que habita no interior do nosso pensar e escraviza a nossa maneira de agir. Jamais poderemos nos considerar livres se não percebermos isto com suficiente clareza e nitidez.

5 de set. de 2005

Artigo - Simplicidade Filosófica

Quando nos predispomos a compreender algo que não nos é familiar, pensamos que a primeira abordagem a ser feita é a dos aspectos mais simples que envolvem a questão estudada, tendo em vista facilitar o nosso acesso, através de uma eventual identificação do novo com o conhecimento que já possuímos. De certa forma, é isto que apregoa Descartes, quando defende que devemos partir dos problemas mais simples, evoluindo para os mais complexos, na medida em que as soluções forem encontradas.
Se aplicarmos isto à comunicação verbal, pressupomos que a formulação de uma frase já subentende a compreensão implícita das palavras que a compõem, embora o significado desta composição transcenda a pura soma de seus significados.
Parece simples definir o o significado de uma palavra, bastando-se recorrer a um bom dicionário, mas esta é uma questão, ao meu ver, ampla e instigante, visto que a palavra é um signo e, como tal, se reveste de toda a complexidade do processo de atribuir e interpretar os significados.
Quando penso em encontrar definições plausíveis de serem transmitidas, uma palavra que ocupa a minha atenção hoje e continuará ocupando por muito tempo é Filosofia. Obviamente, não levo em conta aqui as diversas aplicações cotidianas onde ela apaprece, no meu entender, de forma imprópria. Não pretendo tratar desta questão agora, senão usá-la para evocar uma perspectiva sobre o assunto.
Henri Bergson (1859-1941), filósofo francês, afirma que a Filosofia é simples, muito simples.
As noções pessoais que podemos construir acerca da Filosofia derivam dos diversos graus de contato que podemos ter com a sua prática. O contato mais distante e tênue provém do senso comum do grupo social do qual fazemos parte. O contato pode se dar, também, através de uma referência indireta de algum professor ou autor estudado. Por meio da atividade de cursar uma disciplina com vínculos estreitos em relação a algum pensamento filosófico. Da leitura de algum comentador. Da necessidade de se realizar um trabalho de aula. Da frequência em um curso regular de Filosofia. Na verdade, em todas estas circunstâncias, seja pela mística de quem desconhece, seja pela experiência de quem já se dedicou a profundos estudos, a opinião geral é aquela que vê a Filosofia como uma coisa muito complexa e de difícil compreensão (alguns dirão que, além disso, não possui utilidade alguma).
O que faria Bergson considerá-la, então, diferentemente da maioria, algo tão simples? Seria uma posição egoísta de alguém que arrogantemente, após adentrar certos "mistérios", resolve tripudiar dos que não possuem a mesma capacidade? Não, não é este o caso.
Bergson vê o discurso filosófico, ou seja, o conteúdo escrito das obras dos filósofos, como uma ação antecedida por uma intuição. Na sua compreensão, a realidade é duração e movimento. Ela se prolonga como um contínuo, sem início ou fim. A mente humana, no processo de torná-la inteligível, elimina o movimento, tranformando-o em uma sucessão de quadros estáticos, a exemplo de um filme, onde as diversas fotos são colocadas em sequência, dando a ilusão de movimento.
Assim sendo, Bergson distingue a inteligência da intuição, pois, se a inteligência fragmenta e congela o movimento, a intuição o percebe como é de fato. Então, o filósofo se esforça em descrever a intuição que teve, se utilizando da linguagem disponível, muitas vezes fazendo como a ciência, ou seja, aprisionando a realidade em uma imagem estática, devido à insuficiência de seu instrumento, a linguagem. Lembremos, porém, que este instrumento não serve apenas como meio de comunicação com os outros, a linguagem é utilizada para a construção da nossa própria compreensão. O nosso pensamento se manifesta como uma composição de caráter linguístico que expressa uma intuição original, distante da própria constituição daquilo que concebemos como real. Em virtude disso, na maioria das vezes, a nossa linguagem não somente é a forma como conseguimos expressar as nossas intuições, senão a forma como as compreendemos.
Neste sentido, Bergson diz que a Filosofia é simples, visto que a intuição que a motivou também é simples, elementar e pura. É o esforço de converter esta intuição original, primeiro em pensamento e, depois, em palavra, que torna complexa a expressão filosófica. Isto nos faz pensar que, talvez, além da compreensão intelectual que pode ser suscitada pelo texto, o escrito é também um esboço, uma insinuação de algo maior, não descrito explicitamente pela sua impossibilidade de sê-lo.
Se os intrincados meandros da tradição filosófica são a expressão de algo essencialmente simples, o que não se dizer do restante das nossas construções e até mesmo das nossas vidas. Não deve ser muito complicado perceber que a forma como o homem conduz as coisas, atualmente, não oferece perspectivas muito luminosas para o futuro próximo, ou estarei simplificando demasiadamente as coisas?

26 de ago. de 2005

Artigo - O Muro

Toda a linha se dá a existir como um marco fronteiriço. As linhas dos lábios separam o que é boca do que é rosto. As linhas dos olhos, do nariz e da sobrancelha marcam similares distinções. Independentemente dos lábios serem grandes ou pequenos, pálidos ou avermelhados, eles não se esgotam em si mesmos, viram boca e esta se propaga para dentro. De repente, são dentes, com as suas próprias linhas de separação. Se é possível reconhecer que há dentes, assim como, bocas e olhos, ninguém reconhece a sua autonomia, não importando quão grossas e bem delineadas sejam as linhas que os definem. Eles são diferenças que se conjugam, confundindo linhas que se perdem e se encontram, em uma suposta unidade, às vezes denominada de pessoa.
O muro é, em si mesmo, uma boa representação de fronteira e, se as fronteiras são linhas, o muro é uma linha construída como um monumento, um monumento às fronteiras, às linhas, aos marcos de separação. Aqueles marcos que assinalam quando uma coisa é ela mesma e quando deixa de ser isso para se tornar outra.
O muro é refratário tanto à invasão, como à evasão. É a linha que se interpõe para que o externo não venha a se confundir com o interno, corrompendo-o, compartilhando-o, violentando-o, alterando o que se supõe ser uma condição regular, essencial e aceitável, definidora da internalidade. Ao mesmo tempo, é a linha que se interpõe para que o interno não se propague, não adultere o externo com laivos de particularidades insustentáveis. O muro representa o inacessível, como príncipio de repressão a toda ousadia. Da mesma forma, representa o proibido, que transforma a própria ousadia em anátema, em crime. São as linhas de dentro e de fora, aquelas de onde não se deve sair e aquelas que não se deve adentrar.
Se arremessássemos o nosso corpo, com suficiente força, sobre um muro, ele se partiria. O choque poderia ser suficiente para extinguir a vida e a peça dura, que apara e impede o movimento livre, da mesma forma que os raios e trovões de outrora já foram deuses, se torna toda inteireza e solidez, unidade e sustentação, inércia e realidade. Essa construção se porta como mais real e viva que a existência que se esfacela em sua superfície.
A dor dos ossos, a princípio, não engana. É certa e segura. O duro dói. A primeira verdade é que o muro existe, é duro, está parado e dói. Mas como chegamos a este ponto de permitir que qualquer coisa nos engane? Estático e sólido, cheio de si em sua imponência monolítica, quem diria que o muro traz, em sua mais íntima estrutura, o segredo de uma essência que é vazio e movimento, a segunda verdade.
Enquanto o vazio e o movimento, presentes no muro, enganam os olhos e os corpos, por constituírem a ilusão do indivisível, impondo ao físico o limite que a percepção do suposto inquebrantável engendra, da mesma forma geram a tessitura assustadora de um abismo que se impõe ao pensamento, egolindo-o da mesma maneira que o muro esfacela a fragilidade do corpo. Curiosa analogia esta que mostra a capacidade que o vazio e o movimento possuem de estabelecer limites aos pensamentos, da mesma forma como fazem com os corpos ditos concretos.
Poderia se imaginar que, para fazer frente a tais limites, os corpos e os pensamentos deveriam ser mais robustos, mais resistentes, como se fosse possível que o chumbo pudesse adquirir leveza suficiente para atravessar o vazio e sair ileso, sem se perder. Não, corpos que superam muros e pensamentos que superam abismos são tão inefáveis que parecem não existir. Para isso, há que se abrir mão da aspiração de rigidez, de solidez, de poder. Há que se perder o medo de partir-se, de despedaçar-se, de perder-se. Há que ser muito mais, sendo inexplicavelmente simples. Talvez seja cedo demais para tudo isso.

19 de ago. de 2005

Artigo - Cenho Franzido

Comparando com épocas anteriores, é possível que eu passe mais tempo hoje com o cenho franzido. Nunca fui partidário desta ideologia (a do senho franzido), preferindo faces mais leves e despidas de um número excessivo de irregularidades. Maior deveria ser a minha preocupação agora, visto que já estou adentrando aquela idade em que as expressões faciais são mais duradouras, os vincos não estão mais a passeio pelo rosto, eles vieram para ficar. Mas o que posso fazer? A vida não poupa as nossas rugas, caçoa delas.
Sempre que lembro, procuro eliminar estas tensões. Menos por vaidade que por profilaxia da alma e do corpo, tento manter a duras penas uma atitude um pouco mais branda. Mesmo assim, o bom senso às vezes escapa e lá está de novo o cenho franzido e as costas retesadas, parecendo uma corda de violão demasiadamente esticada. Para quem não sabe, uma corda nestas condições, além da maior dificuldade em ser tocada e de produzir uma nota de curta duração, se parte com razoável facilidade. O que fazemos conosco é justamente isto, nos colocamos em condição de sermos facilmente quebrados, além de produzirmos um som sem brilho e vivacidade. Postas as coisas desta forma, é pertinente a pergunta: o que esperamos de nós mesmos?
Tanto quanto a sociedade atual é marcada por uma inundação de informação, jamais vista em outro momento histórico, a posição do ser humano parece se definir cada vez mais como periférica em relação ao eixo das mudanças. Não há como negar o fato de que pessoas desenvolvem as tecnologias que impactam sobre as vidas de todos. São pessoas que estabelecem as modas e os costumes. São as pessoas que cometem os crimes e aplicam a justiça. São pessoas que governam os estados e que mandam outras pessoas serem mortas nas guerras. São pessoas os que logram e os que são logrados, os que matam e os que são mortos. Se tudo é assim, por que tenho a sensação de que a posição do homem não é central em todas as suas atividades?
Se tomarmos como exemplo a questão da educação, poderemos compreender um pouco melhor este viés. Werner Jaeger, em sua clássica obra intitulada Paidéia - A Formação do Homem Grego, diz que a educação é a forma que as civilizações engendraram para se perpetuarem ao longo do tempo. Todo modelo educacional tem por objetivo formar (ou deformar) os indivíduos, segundo uma imagem de homem tida como ideal pela cultura que construiu e mantém este modelo. Se não conseguimos vislumbrar com clareza os fins que a sociedade estabelece para nós, quanto ao nosso lugar na sua estrutura, então analisemos a educação que ela criou para nos adequarmos a seus moldes.
Não é necessário fazer um estudo muito profundo para notarmos que o modelo vigente de educação tem como intenção preparar o indivíduo para o mercado de trabalho. Professores, instituições, pais e alunos já sabem e assumem isso. Essa aceitação se dá de modo tão natural que a maioria de nós não consegue nem sequer imaginar que outro propósito poderia ter o processo de aprendizagem.
Este direcionamento traz consigo uma idéia implícita de finalidade para o ser humano, no contexto social atual. Somos instrumentos, meios a serem disponibilizados para que outras vontades, que não as nossas, possam atingir seus, para nós inacessíveis, objetivos. Quanto mais treinados, instrumentos melhores somos, com direito a poder sonhar com recompensas maiores. A ascensão se dá pela possibilidade de poder dispor de outros instrumentos e, talvez, compartilhar de parte da visão dos fins para os quais todos estes instrumentos são utilizados. Este último, o mais trágico, nos conduz pelo caminho de reconhecer que não há um fim, um propósito, tudo é manter a máquina funcionando, manter as pessoas trabalhando e consumindo. Qualquer idéia ou princípio é válido se puder contribuir com o andamento deste processo, caso contrário é pernicioso, assim como o seu autor.
Se voltarmos a fazer a pergunta ("o que esperamos de nós?"), talvez venhamos a descubrir que somente esperamos o que outros nos permitem esperar, ou então perceber que não deveríamos esperar nada e sim andar com os nossos próprios passos. Será que o aperto da corda não seria, também, a intuição de que caberia a cada um de nós tornar as nossas vidas mais luminosas e dignas de serem vividas?

5 de ago. de 2005

Artigo - Divagações

Conforme os anos passam e amaciam a nossa carne, começamos a notar que à idade soma-se, ou pelo menos deveria somar-se, a experiência. Consideramos, de forma geral, que uma boa experiência é aquela que se traduz em amadurecimento intelectual e emocional. Obviamente, o amadurecimento representa algo importante na medida em que nos permite, além do acúmulo de conhecimentos, aprimorar a capacidade de bem julgar as coisas.
Normalmente, aquele que, tendo sido confrontado com sofrimentos, angústias e preocupações, e julga ter superado estes momentos, substituindo-os por outros mais prazeirosos e tranqüilos, acredita saber a fórmula para a solução, não só dos seus problemas, mas os de todos os seus semelhantes. Procede de forma similar aquele que, ao fracassar na tentativa de esquivar-se aos seus infortúnios, observa alguém que parece fazê-lo com maior sucesso, acreditando poder elaborar o correto diagnóstico, tanto dos próprios erros como dos acertos daquele que inveja.
Não é falar uma grande novidade ou manifestar uma singular constatação dizer que, na maioria das vezes, os homens pouco tempo dispendem em questionar de forma significativa as suas próprias conclusões, incorrendo com freqüência no risco de tomarem por grande sabedoria alguma tolice herdada daqueles que julgam possuir um esclarecimento superior acerca das questões da vida, sejam seus pais, mestres, amigos ou qualquer outra pessoa que exerça uma influência significativa sobre eles. Sabemos que, se isto acontece, não é por má-fé, pois todo aquele que ama busca dar o seu melhor ao ser amado, inclusive compartilhando com ele o conhecimento que pensa ser oportuno para desviar-se das armadilhas que o mundo coloca em seu caminho. A experiência possui o seu valor, não há como negar, e deixar de beber nesta fonte que pode nos curar de tantos males antes mesmo que eles aconteçam não poderia ser considerada uma opção facilmente descartável. Mesmo assim, se valorizamos o que sabemos porque conquistamos este saber pela experiência e acreditamos que, se os que amamos acolherem este saber como seu, poderão se furtar a pagar o preço que pagamos com o nosso sofrimento, não estaríamos lhes subtraindo a oportunidade de criarem-se a si mesmos e diminuindo o valor da experiência em si?
Se a isso somarmos o fato de que nada garante a certeza das nossas certezas, a não ser a confiança que temos nelas, notaremos que; tanto quanto podemos conceder valor à maturidade que adquirimos pela experiência vivenciada e acreditamos que ela deve ser considerada não só para nós mesmos, como para os outros; nunca teremos o direito de forçar qualquer pessoa a seguir os nossos passos, devendo pensar da maneira como pensamos, agir da maneira como agimos e escolher da maneira como escolhemos. Como, então, escolher o melhor caminho?
Primeiramente, podemos dizer que as almas mais nobres, mesmo não sendo poupadas em termos de sofrimento, jamais deixaram de possur generosas porções de discernimento, encontrando sempre formas de arbitrarem questões aparentemente insolúveis. Aristóteles situa a virtude no meio-termo (mesóthes), indicando que o homem virtuoso é aquele que evita tanto o excesso como a falta, ou seja, segundo o mestre grego, devemos evitar tanto o excesso de zelo como a falta deste.
Na realidade, embora tenhamos muita dificuldade em aceitar, nada diminue mais a nossa capacidade de escolher bem do que o nosso forte apego ao orgulho e ao egoísmo. Experimentemos ficar um dia libertos deste jugo tão cruel, para notarmos quão longe podemos ir sem ele.

29 de jul. de 2005

Artigo - O Outro

Não descarto a possibilidade de, a exemplo de um conto de Borges, me ver confrontado comigo mesmo em alguma das esquinas que a vida nos oferece ao longo do tempo. Neste conto, intitulado "O Outro", o brilhante escritor argentino descreve o inusitado encontro vivenciado entre ele e uma versão sua mais jovem.
À primeira vista, um enredo que tenha tal motivo como tema principal de sua trama pode parecer simplesmente uma ficção do gênero fantástico (quantas vezes Jorge Luis Borges não foi classificado como um simples escritor de contos fantásticos, não importando que seja um dos maiores nomes da literatura do século passado), mas o título já nos dá a pista da dimensão que ele adquire ao tocar em assunto tão espinhoso.
No Fédon, de Platão, Sócrates, ao ser libertado dos grilhões que o prendiam, faz um comentário acerca da ligação existente entre o prazer e sofrimento, na medida em que um sempre sucede ao outro, conjeturando acerca da relação que há entre os contrários. Faz isso enquanto massageia as pernas e reflete acerca do prazer que lhe causa ser liberto das correntes, sendo que o prazer só era proporcionado pelo sofrimento que lhe causava a condição de estar aprisionado. Esta mesma relação de contrários parece justificar a preocupação que tantos pensadores tiveram, ao longo do século XX, com a questão do "outro", também chamada de alteridade.
Quando Descartes afirma "Penso, logo, existo.", afirma uma certeza que nasce e se consolida somente na consciência de quem pensa. Esta consciência sempre foi compreendida como individual e própria de cada ser humano. O próprio filósofo francês descreve, no "Discurso do Método", que as suas conclusões derivam da sua trajetória e convida cada qual a seguir o seu próprio caminho. Se tomarmos o exemplo de Locke, este pensador inglês defenderá um mínimo de intervenção do estado na vida privada, de modo que cada um possa viver a sua vida como bem lhe aprouver, desde que não afete a liberdade dos outros. Estes pensadores são apenas dois, dentre muitos exemplos típicos da filosofia moderna, onde mesmo a relação social é concebida em um ângulo com certa predominância individualista. Não é, então, por acaso que a sociedade atual tenha esta característica como, provavelmente, a sua marca mais representativa. Devemos dizer, porém, que as diversas variantes de individualismo propagadas pelos pensadores modernistas foram construídas numa tentativa de exaltação da pessoa humana, que se via reprimida por um cenário político, religioso, social, econômico e cultural de submissão à ordem vigente. Podemos acrescentar que, nem de longe, se concebia este pensamento como uma forma de individualismo ou, pior ainda, de egoísmo institucionalizado. Havia, nestas vertentes filosóficas, a pressuposição de que a razão poderia trazer o esclarecimento e libertar a civilização do obscurantismo e da barbárie. Mesmo assim, o pensamento moderno, em algumas interpretações mais contemporâneas, traz como uma de suas marcas o solipsismo e é muito provável que seja isto que fomenta a questão da alteridade. Mais claramente, como se dá a percepção do outro nesta consciência que busca a sua certeza de existência numa forma individualista que prescinde do que lhe é diferente?
É neste ponto que o conto de Borges se mostra como uma superação da questão anterior, pois ele coloca o homem como outro de si mesmo. O alerta que ele nos sugere é que, mesmo posta a questão de como percebemos e vivenciamos o nosso choque com o que identificamos como diferente daquilo que somos, persiste a questão da diferença intrínseca do homem consigo mesmo.
O que somos? Consideramos como inegável o fato de que vivemos na mudança, na transformação. A pele, as unhas, os cabelos, as idéias e as roupas, entre outras coisas, nos mostram que não há momento em que paramos este processo de movimento contínuo daquilo que somos. Entretanto, acima disso, acreditamos possuir unidade e identidade como atributos, isto é, somos uma coisa e esta coisa é igual a si mesma. Com o passar dos anos, envelhecemos e reconhecemos isto, reconhecemos que não somos mais os mesmos, ao mesmo tempo em que não questionamos o fato de que ainda somos os mesmos! Como sair desta contradição? Como se projetar acima desta contradição e pensar o outro?
Na verdade, a percepção direta, originária e espontânea nos coloca as coisa de maneira bem simples, ou seja, eu sou um, diferente dos outros que se dão a minha frente e que possivelmente, cada qual a sua forma, também é um. Quando o pensamento se volta para estas obviedades, pensando-as, parece que todas as definições e contrastes se diluem, tornando-se mais indefiníveis, em oposição à clareza anterior. A primeira perspectiva coloca tudo como peças individuais em um imensurável tabuleiro, a segunda já não define fronteiras e acaba por conceber tudo como uma coisa só. Como diria o sapo de Gibran, é possível que, no final das contas, as duas estejam certas e nenhuma delas esteja errada.

15 de jul. de 2005

Artigo - Um Filme

Assisti há alguns meses atrás um filme chamado "Visões" (o título original é "Imagining Argentina", baseado numa novela homônima e premiada do escritor americano Lawrence Thormton). Este filme tem como protagonista o personagem de Carlos Rueda (interpretado por Antonio Banderas), um diretor de teatro infantil que vive o drama do desaparecimento de sua esposa, a jornalista Cecília (interpretada por Emma Thompson), após a publicação de um polêmico artigo de sua autoria.
Misturando ficção e realidade, a narrativa usa como cenário a ditadura militar Argentina que durou de 1976 a 1983 e foi considerada uma das mais violentas entre as ocorridas na América Latina (nós também tivemos a nossa versão tupiniquim, com a respectiva cota de torturas e assassinatos). Estima-se que este regime tenha se incumbido de fazer "desaparecer" cerca de 30.000 pessoas.
O filme foi vaiado na sua apresentação na mostra competitiva, no Festival de Veneza de 2003 e, desde então, passou a ser considerado pela crítica "especializada" como um trabalho que dá um tratamento infantil a uma temática tão séria e delicada. Puro intelectualismo de revista, ignorância disfarçada e preconceito ridículo. Na realidade, as críticas se centraram em, principalmente, dois aspectos: o primeiro é que o diretor não é fiel aos fatos históricos e, em segundo lugar, que Carlos Rueda, após o desaparecimento de sua esposa, é acometido de uma vidência que lhe permite vislumbrar o que aconteceu com algumas das pessoas desaparecidas. Sem sombra de dúvida, foi este último aspecto que fez o filme cair em descrédito. Alguns afirmaram que o drama real se viu colocado em segundo plano pela "fantasia-macumba-paranormalidade" de Rueda, fazendo com que tudo parecesse uma pantomima e não o retrato de um momento histórico deplorável pelo qual passou a humanidade.
Ao contrário dos "críticos", a impressão que me ficou foi que a vidência do personagem não arremessou a história para um surrealismo estupidificante, mas justamente para o campo da humanidade em sua dimensão existencial, ocupando um papel mais periférico a sua contestada paranormalidade. Para quem tiver dúvida, todos os elementos envolvidos em uma ditadura sanguinária estão no filme: seqüestros, assassinatos, torturas, estupro, angústia, desespero, opressão, medo, insegurança e dor, muita dor. Dor física e dor psicológica.
Me lembro que, ao terminar de ver o filme, fiquei pensativo e distante. Pensei primeiro no fato de que os seres humanos são sempre assombrados pelo fantasma da própria brutalidade, porque ao contemplarmos a bárbarie de outros tempos e lugares, tanto quanto nos condoemos das dores sofridas, tememos que um dia elas retornem sobre nós e sobre aqueles que amamos. Além disso, me perguntei se, pelo fato da força da opressão não ser visível, ela não poderia sobreviver de uma forma que nós não a víamos, embora seguíssemos os seus ditames? Em outras palavras, estaríamos mesmo livres da ação de homens que, necessitando, se utilizariam dos mais torpes e vis expedientes para alcançar os seus intentos? Pensamos que os anos de chumbo sobrevivem hoje apenas como uma amarga lembrança do passado, pois não há mais a censura violenta para aqueles que falam. Não somos mais calados à força. Aí, então, me questiono se não somos mais calados por que temos liberdade ou por que não falamos mais nada que seja tão perigoso que precise ser calado? Para esta pergunta eu não tenho resposta, mas que ela assusta, assusta.

1 de jul. de 2005

Artigo - Escolhas

Uma escolha é resultado do confronto entre um impulso interno e duas percepções. A primeira percepção é a de que existem possibilidades, isto é, não há escolha quando cremos que as coisas só podem se dar de uma única maneira. A segunda percepção é a de potência própria para dispor de si mesmo de tal forma que se considere apto a trafegar por entre as possibilidades vislumbradas. Sendo assim, mesmo para escolher a cor de um casaco, é necessário o impulso (ou pendor) por uma determinada cor, a percepção de que há mais do que uma cor possível e a crença na capacidade própria para efetuar tal escolha.
Destes 3 elementos, o mais nebuloso é aquele que representa o impulso para as escolhas. Por que preferimos o verde ao azul (ou o contrário, ou o vermelho, ou o rosa, ou o amarelo)? Por que preferimos com mais pimenta (ou com menos, ou com mais sal, ou com menos...)? Por que gostamos mais dos dias de sol (ou de chuva, ou da noite, ou do entardecer, ou do amanhecer...)? A primeira questão é, na verdade, por que, se pudéssemos escolher livremente, escolheríamos desta forma e não de outra?
Em meio a concepções religiosas, psicanalíticas, filosóficas, místicas (e sabe lá quantas mais) buscamos sempre encontrar uma interpretação que torne concreto o que nos aparece como este impulso indefinível. Muitos dirão que o que desejam na vida é uma carreira ascendente, serem um sucesso.
- Mas por quê?
- Ora, para ser reconhecido e respeitado.
- Mas por quê?
- Tá bom! Para ter dinheiro, conforto e fugir deste tipo de preocupação?
- Mas por quê?
- Ah! Pára de me incomodar!
No geral, somos exatamente isto! Este ser afoito, estabanado, ambicioso e egoísta que, quando confrontado com suas próprias aspirações, foge assustado por não compreender sequer a sua origem e sentido.
Por outro lado, antes que tentássemos efetuar um enorme esforço para listar as possibilidades inerentes à existência de um ser humano, creio que constataríamos o ridículo da tarefa, dada a infinidade de experiências possíveis que conseguimos imaginar, amparados somente na nossa vivência. Um ser humano pode estar vivo ou não. Pode estar ocioso ou trabalhando. Brincando, conversando, chorando, lendo, contando piada, fazendo amor, assistindo televisão, jogando futebol, costurando, varrendo o chão, comendo, bebendo, dançando, correndo, cultivando a terra, fofocando, contando dinheiro (ou a sua falta), escrevendo, dando à luz, matando ou morrendo. Pode estar de pé ou deitado. Dormindo, sonhando, gritando ou brigando. Contando histórias, pensando ou roubando. Pode ser psicólogo, médico, gari, garçom, professor, palhaço, mergulhador, atleta, juiz, advogado, ladrão, traficante, mentiroso, padre, vagabundo, malandro, músico, bailarino, pintor, engenheiro, faxineiro, poeta, escritor, empresário, político, balconista, cozinheiro, ou sei lá o que mais. O ser humano pode ser tantas coisas que nenhum de nós conseguiria enumerar todas. E cada coisa enumerada não seria estanque, não seria a única forma, mas um modo específico que alguém vivenciaria em um dado momento, podendo cada qual ser de incontáveis maneiras, em incontáveis momentos. Entretanto, na maioria das vezes, nos pensamos a nós mesmos como seres sem possibilidades, seres inertes e imutáveis. Não percebemos com isto que, ao longo do tempo, estamos por reafirmar uma escolha, a escolha de que não existem possibilidades. Se, em algum momento, percebemos as possibilidades, podemos ainda ser barrados pela sensação de impotência diante delas. Então, nos acreditamos indignos das múltiplas possibilidades humanas ou incapazes de ter acesso a elas.
Como a nossa lembrança estabelece os seus marcos representativos, as pessoas acreditam que fizeram escolhas que definiram as suas vidas. Quando pensam no casamento, geralmente evocam a memória da cerimônia. Esquecem que, para o bem ou para o mal, escolhem todos os dias estarem ou não casadas. Escolhem todos os dias os seus empregos. Escolhem todos os dias as suas tristezas e alegrias. Escolhem as suas vidas e a serem como são. Não há a grande escolha, a grande virada, a grande decisão. Há o conjunto, o liame, de infinitos momentos de afirmação ou negação e é ali que nós nos decidimos, é ali que nós nos definimos.
Enfim, vivemos condenados pelo conflito entre o anseio de liberdade e o medo de escolher. Sartre tinha razão, o que nos falta em imaginação ou coragem, nos sobra em má-fé.