1 de jul. de 2005

Artigo - Escolhas

Uma escolha é resultado do confronto entre um impulso interno e duas percepções. A primeira percepção é a de que existem possibilidades, isto é, não há escolha quando cremos que as coisas só podem se dar de uma única maneira. A segunda percepção é a de potência própria para dispor de si mesmo de tal forma que se considere apto a trafegar por entre as possibilidades vislumbradas. Sendo assim, mesmo para escolher a cor de um casaco, é necessário o impulso (ou pendor) por uma determinada cor, a percepção de que há mais do que uma cor possível e a crença na capacidade própria para efetuar tal escolha.
Destes 3 elementos, o mais nebuloso é aquele que representa o impulso para as escolhas. Por que preferimos o verde ao azul (ou o contrário, ou o vermelho, ou o rosa, ou o amarelo)? Por que preferimos com mais pimenta (ou com menos, ou com mais sal, ou com menos...)? Por que gostamos mais dos dias de sol (ou de chuva, ou da noite, ou do entardecer, ou do amanhecer...)? A primeira questão é, na verdade, por que, se pudéssemos escolher livremente, escolheríamos desta forma e não de outra?
Em meio a concepções religiosas, psicanalíticas, filosóficas, místicas (e sabe lá quantas mais) buscamos sempre encontrar uma interpretação que torne concreto o que nos aparece como este impulso indefinível. Muitos dirão que o que desejam na vida é uma carreira ascendente, serem um sucesso.
- Mas por quê?
- Ora, para ser reconhecido e respeitado.
- Mas por quê?
- Tá bom! Para ter dinheiro, conforto e fugir deste tipo de preocupação?
- Mas por quê?
- Ah! Pára de me incomodar!
No geral, somos exatamente isto! Este ser afoito, estabanado, ambicioso e egoísta que, quando confrontado com suas próprias aspirações, foge assustado por não compreender sequer a sua origem e sentido.
Por outro lado, antes que tentássemos efetuar um enorme esforço para listar as possibilidades inerentes à existência de um ser humano, creio que constataríamos o ridículo da tarefa, dada a infinidade de experiências possíveis que conseguimos imaginar, amparados somente na nossa vivência. Um ser humano pode estar vivo ou não. Pode estar ocioso ou trabalhando. Brincando, conversando, chorando, lendo, contando piada, fazendo amor, assistindo televisão, jogando futebol, costurando, varrendo o chão, comendo, bebendo, dançando, correndo, cultivando a terra, fofocando, contando dinheiro (ou a sua falta), escrevendo, dando à luz, matando ou morrendo. Pode estar de pé ou deitado. Dormindo, sonhando, gritando ou brigando. Contando histórias, pensando ou roubando. Pode ser psicólogo, médico, gari, garçom, professor, palhaço, mergulhador, atleta, juiz, advogado, ladrão, traficante, mentiroso, padre, vagabundo, malandro, músico, bailarino, pintor, engenheiro, faxineiro, poeta, escritor, empresário, político, balconista, cozinheiro, ou sei lá o que mais. O ser humano pode ser tantas coisas que nenhum de nós conseguiria enumerar todas. E cada coisa enumerada não seria estanque, não seria a única forma, mas um modo específico que alguém vivenciaria em um dado momento, podendo cada qual ser de incontáveis maneiras, em incontáveis momentos. Entretanto, na maioria das vezes, nos pensamos a nós mesmos como seres sem possibilidades, seres inertes e imutáveis. Não percebemos com isto que, ao longo do tempo, estamos por reafirmar uma escolha, a escolha de que não existem possibilidades. Se, em algum momento, percebemos as possibilidades, podemos ainda ser barrados pela sensação de impotência diante delas. Então, nos acreditamos indignos das múltiplas possibilidades humanas ou incapazes de ter acesso a elas.
Como a nossa lembrança estabelece os seus marcos representativos, as pessoas acreditam que fizeram escolhas que definiram as suas vidas. Quando pensam no casamento, geralmente evocam a memória da cerimônia. Esquecem que, para o bem ou para o mal, escolhem todos os dias estarem ou não casadas. Escolhem todos os dias os seus empregos. Escolhem todos os dias as suas tristezas e alegrias. Escolhem as suas vidas e a serem como são. Não há a grande escolha, a grande virada, a grande decisão. Há o conjunto, o liame, de infinitos momentos de afirmação ou negação e é ali que nós nos decidimos, é ali que nós nos definimos.
Enfim, vivemos condenados pelo conflito entre o anseio de liberdade e o medo de escolher. Sartre tinha razão, o que nos falta em imaginação ou coragem, nos sobra em má-fé.