29 de jul. de 2005

Artigo - O Outro

Não descarto a possibilidade de, a exemplo de um conto de Borges, me ver confrontado comigo mesmo em alguma das esquinas que a vida nos oferece ao longo do tempo. Neste conto, intitulado "O Outro", o brilhante escritor argentino descreve o inusitado encontro vivenciado entre ele e uma versão sua mais jovem.
À primeira vista, um enredo que tenha tal motivo como tema principal de sua trama pode parecer simplesmente uma ficção do gênero fantástico (quantas vezes Jorge Luis Borges não foi classificado como um simples escritor de contos fantásticos, não importando que seja um dos maiores nomes da literatura do século passado), mas o título já nos dá a pista da dimensão que ele adquire ao tocar em assunto tão espinhoso.
No Fédon, de Platão, Sócrates, ao ser libertado dos grilhões que o prendiam, faz um comentário acerca da ligação existente entre o prazer e sofrimento, na medida em que um sempre sucede ao outro, conjeturando acerca da relação que há entre os contrários. Faz isso enquanto massageia as pernas e reflete acerca do prazer que lhe causa ser liberto das correntes, sendo que o prazer só era proporcionado pelo sofrimento que lhe causava a condição de estar aprisionado. Esta mesma relação de contrários parece justificar a preocupação que tantos pensadores tiveram, ao longo do século XX, com a questão do "outro", também chamada de alteridade.
Quando Descartes afirma "Penso, logo, existo.", afirma uma certeza que nasce e se consolida somente na consciência de quem pensa. Esta consciência sempre foi compreendida como individual e própria de cada ser humano. O próprio filósofo francês descreve, no "Discurso do Método", que as suas conclusões derivam da sua trajetória e convida cada qual a seguir o seu próprio caminho. Se tomarmos o exemplo de Locke, este pensador inglês defenderá um mínimo de intervenção do estado na vida privada, de modo que cada um possa viver a sua vida como bem lhe aprouver, desde que não afete a liberdade dos outros. Estes pensadores são apenas dois, dentre muitos exemplos típicos da filosofia moderna, onde mesmo a relação social é concebida em um ângulo com certa predominância individualista. Não é, então, por acaso que a sociedade atual tenha esta característica como, provavelmente, a sua marca mais representativa. Devemos dizer, porém, que as diversas variantes de individualismo propagadas pelos pensadores modernistas foram construídas numa tentativa de exaltação da pessoa humana, que se via reprimida por um cenário político, religioso, social, econômico e cultural de submissão à ordem vigente. Podemos acrescentar que, nem de longe, se concebia este pensamento como uma forma de individualismo ou, pior ainda, de egoísmo institucionalizado. Havia, nestas vertentes filosóficas, a pressuposição de que a razão poderia trazer o esclarecimento e libertar a civilização do obscurantismo e da barbárie. Mesmo assim, o pensamento moderno, em algumas interpretações mais contemporâneas, traz como uma de suas marcas o solipsismo e é muito provável que seja isto que fomenta a questão da alteridade. Mais claramente, como se dá a percepção do outro nesta consciência que busca a sua certeza de existência numa forma individualista que prescinde do que lhe é diferente?
É neste ponto que o conto de Borges se mostra como uma superação da questão anterior, pois ele coloca o homem como outro de si mesmo. O alerta que ele nos sugere é que, mesmo posta a questão de como percebemos e vivenciamos o nosso choque com o que identificamos como diferente daquilo que somos, persiste a questão da diferença intrínseca do homem consigo mesmo.
O que somos? Consideramos como inegável o fato de que vivemos na mudança, na transformação. A pele, as unhas, os cabelos, as idéias e as roupas, entre outras coisas, nos mostram que não há momento em que paramos este processo de movimento contínuo daquilo que somos. Entretanto, acima disso, acreditamos possuir unidade e identidade como atributos, isto é, somos uma coisa e esta coisa é igual a si mesma. Com o passar dos anos, envelhecemos e reconhecemos isto, reconhecemos que não somos mais os mesmos, ao mesmo tempo em que não questionamos o fato de que ainda somos os mesmos! Como sair desta contradição? Como se projetar acima desta contradição e pensar o outro?
Na verdade, a percepção direta, originária e espontânea nos coloca as coisa de maneira bem simples, ou seja, eu sou um, diferente dos outros que se dão a minha frente e que possivelmente, cada qual a sua forma, também é um. Quando o pensamento se volta para estas obviedades, pensando-as, parece que todas as definições e contrastes se diluem, tornando-se mais indefiníveis, em oposição à clareza anterior. A primeira perspectiva coloca tudo como peças individuais em um imensurável tabuleiro, a segunda já não define fronteiras e acaba por conceber tudo como uma coisa só. Como diria o sapo de Gibran, é possível que, no final das contas, as duas estejam certas e nenhuma delas esteja errada.