19 de ago. de 2005

Artigo - Cenho Franzido

Comparando com épocas anteriores, é possível que eu passe mais tempo hoje com o cenho franzido. Nunca fui partidário desta ideologia (a do senho franzido), preferindo faces mais leves e despidas de um número excessivo de irregularidades. Maior deveria ser a minha preocupação agora, visto que já estou adentrando aquela idade em que as expressões faciais são mais duradouras, os vincos não estão mais a passeio pelo rosto, eles vieram para ficar. Mas o que posso fazer? A vida não poupa as nossas rugas, caçoa delas.
Sempre que lembro, procuro eliminar estas tensões. Menos por vaidade que por profilaxia da alma e do corpo, tento manter a duras penas uma atitude um pouco mais branda. Mesmo assim, o bom senso às vezes escapa e lá está de novo o cenho franzido e as costas retesadas, parecendo uma corda de violão demasiadamente esticada. Para quem não sabe, uma corda nestas condições, além da maior dificuldade em ser tocada e de produzir uma nota de curta duração, se parte com razoável facilidade. O que fazemos conosco é justamente isto, nos colocamos em condição de sermos facilmente quebrados, além de produzirmos um som sem brilho e vivacidade. Postas as coisas desta forma, é pertinente a pergunta: o que esperamos de nós mesmos?
Tanto quanto a sociedade atual é marcada por uma inundação de informação, jamais vista em outro momento histórico, a posição do ser humano parece se definir cada vez mais como periférica em relação ao eixo das mudanças. Não há como negar o fato de que pessoas desenvolvem as tecnologias que impactam sobre as vidas de todos. São pessoas que estabelecem as modas e os costumes. São as pessoas que cometem os crimes e aplicam a justiça. São pessoas que governam os estados e que mandam outras pessoas serem mortas nas guerras. São pessoas os que logram e os que são logrados, os que matam e os que são mortos. Se tudo é assim, por que tenho a sensação de que a posição do homem não é central em todas as suas atividades?
Se tomarmos como exemplo a questão da educação, poderemos compreender um pouco melhor este viés. Werner Jaeger, em sua clássica obra intitulada Paidéia - A Formação do Homem Grego, diz que a educação é a forma que as civilizações engendraram para se perpetuarem ao longo do tempo. Todo modelo educacional tem por objetivo formar (ou deformar) os indivíduos, segundo uma imagem de homem tida como ideal pela cultura que construiu e mantém este modelo. Se não conseguimos vislumbrar com clareza os fins que a sociedade estabelece para nós, quanto ao nosso lugar na sua estrutura, então analisemos a educação que ela criou para nos adequarmos a seus moldes.
Não é necessário fazer um estudo muito profundo para notarmos que o modelo vigente de educação tem como intenção preparar o indivíduo para o mercado de trabalho. Professores, instituições, pais e alunos já sabem e assumem isso. Essa aceitação se dá de modo tão natural que a maioria de nós não consegue nem sequer imaginar que outro propósito poderia ter o processo de aprendizagem.
Este direcionamento traz consigo uma idéia implícita de finalidade para o ser humano, no contexto social atual. Somos instrumentos, meios a serem disponibilizados para que outras vontades, que não as nossas, possam atingir seus, para nós inacessíveis, objetivos. Quanto mais treinados, instrumentos melhores somos, com direito a poder sonhar com recompensas maiores. A ascensão se dá pela possibilidade de poder dispor de outros instrumentos e, talvez, compartilhar de parte da visão dos fins para os quais todos estes instrumentos são utilizados. Este último, o mais trágico, nos conduz pelo caminho de reconhecer que não há um fim, um propósito, tudo é manter a máquina funcionando, manter as pessoas trabalhando e consumindo. Qualquer idéia ou princípio é válido se puder contribuir com o andamento deste processo, caso contrário é pernicioso, assim como o seu autor.
Se voltarmos a fazer a pergunta ("o que esperamos de nós?"), talvez venhamos a descubrir que somente esperamos o que outros nos permitem esperar, ou então perceber que não deveríamos esperar nada e sim andar com os nossos próprios passos. Será que o aperto da corda não seria, também, a intuição de que caberia a cada um de nós tornar as nossas vidas mais luminosas e dignas de serem vividas?