26 de ago. de 2005

Artigo - O Muro

Toda a linha se dá a existir como um marco fronteiriço. As linhas dos lábios separam o que é boca do que é rosto. As linhas dos olhos, do nariz e da sobrancelha marcam similares distinções. Independentemente dos lábios serem grandes ou pequenos, pálidos ou avermelhados, eles não se esgotam em si mesmos, viram boca e esta se propaga para dentro. De repente, são dentes, com as suas próprias linhas de separação. Se é possível reconhecer que há dentes, assim como, bocas e olhos, ninguém reconhece a sua autonomia, não importando quão grossas e bem delineadas sejam as linhas que os definem. Eles são diferenças que se conjugam, confundindo linhas que se perdem e se encontram, em uma suposta unidade, às vezes denominada de pessoa.
O muro é, em si mesmo, uma boa representação de fronteira e, se as fronteiras são linhas, o muro é uma linha construída como um monumento, um monumento às fronteiras, às linhas, aos marcos de separação. Aqueles marcos que assinalam quando uma coisa é ela mesma e quando deixa de ser isso para se tornar outra.
O muro é refratário tanto à invasão, como à evasão. É a linha que se interpõe para que o externo não venha a se confundir com o interno, corrompendo-o, compartilhando-o, violentando-o, alterando o que se supõe ser uma condição regular, essencial e aceitável, definidora da internalidade. Ao mesmo tempo, é a linha que se interpõe para que o interno não se propague, não adultere o externo com laivos de particularidades insustentáveis. O muro representa o inacessível, como príncipio de repressão a toda ousadia. Da mesma forma, representa o proibido, que transforma a própria ousadia em anátema, em crime. São as linhas de dentro e de fora, aquelas de onde não se deve sair e aquelas que não se deve adentrar.
Se arremessássemos o nosso corpo, com suficiente força, sobre um muro, ele se partiria. O choque poderia ser suficiente para extinguir a vida e a peça dura, que apara e impede o movimento livre, da mesma forma que os raios e trovões de outrora já foram deuses, se torna toda inteireza e solidez, unidade e sustentação, inércia e realidade. Essa construção se porta como mais real e viva que a existência que se esfacela em sua superfície.
A dor dos ossos, a princípio, não engana. É certa e segura. O duro dói. A primeira verdade é que o muro existe, é duro, está parado e dói. Mas como chegamos a este ponto de permitir que qualquer coisa nos engane? Estático e sólido, cheio de si em sua imponência monolítica, quem diria que o muro traz, em sua mais íntima estrutura, o segredo de uma essência que é vazio e movimento, a segunda verdade.
Enquanto o vazio e o movimento, presentes no muro, enganam os olhos e os corpos, por constituírem a ilusão do indivisível, impondo ao físico o limite que a percepção do suposto inquebrantável engendra, da mesma forma geram a tessitura assustadora de um abismo que se impõe ao pensamento, egolindo-o da mesma maneira que o muro esfacela a fragilidade do corpo. Curiosa analogia esta que mostra a capacidade que o vazio e o movimento possuem de estabelecer limites aos pensamentos, da mesma forma como fazem com os corpos ditos concretos.
Poderia se imaginar que, para fazer frente a tais limites, os corpos e os pensamentos deveriam ser mais robustos, mais resistentes, como se fosse possível que o chumbo pudesse adquirir leveza suficiente para atravessar o vazio e sair ileso, sem se perder. Não, corpos que superam muros e pensamentos que superam abismos são tão inefáveis que parecem não existir. Para isso, há que se abrir mão da aspiração de rigidez, de solidez, de poder. Há que se perder o medo de partir-se, de despedaçar-se, de perder-se. Há que ser muito mais, sendo inexplicavelmente simples. Talvez seja cedo demais para tudo isso.