13 de fev. de 2006

Coisas Concretas

Definir o concreto, à primeira vista, é uma tarefa fácil. Normalmente é aquilo que identificamos como tangível e, a partir disso, transforma-se na personificação do real. Seguindo esta linha, encontramos algo como um fundamento da percepção, ou seja, a percepção verdadeira fundamentar-se-ia no concreto, pela sua característica de tangibilidade, assim, real e existente é o que pode ser “tocado”.
O concreto não é algo em si, mas uma condição que pode ser constatada de maneira específica. A noção mais acessível que podemos observar aqui nasce da experiência que possuímos inerente à prática de afetarmos e sermos afetados pelos objetos que estão ao nosso redor. Objetos considerados simples, individuais, localizados no tempo e no espaço pela sua tangibilidade. Dizemos que a cadeira, assim como um prato, um espelho ou um lápis, é concreta porque constato a sua realidade através dos sentidos, aceitando como pressuposto a validade deste tipo de abertura.
Entretanto, não podemos reduzir esta questão ao simples constatar dos objetos com os quais dividimos o mundo. Há situações em que extraímos o real do imaginário. Se tomarmos um livro e afirmarmos que a sua realidade está na percepção que os nossos sentidos possuem a seu respeito, uma mesma obra editada em diferentes formatos de encadernação, dimensões e papel, nunca poderia ser considerada como diferentes formatos de uma mesma coisa, mas apenas diferentes coisas. Percebemos aqui que há uma realidade imediata no livro enquanto objeto, mas há uma outra, de caráter mais sutil, que revela a passagem do que caracterizamos como abstrato para o considerado concreto. Se o livro parece um exemplo demasiadamente vaporoso, pelo fato de que, para muitas pessoas, ele apenas representa uma resma de papel, cabe aqui dizer que algumas obras de caráter mais facilmente digeríveis também passaram por esta transição, como é o caso dos edifícios, dos aviões, dos automóveis e dos computadores. Houve um momento em que tais objetos não poderiam ser caracterizados como concretos, hoje ninguém ousaria afirmar que eles não o são.
Nesta altura, podemos notar que, mesmo aquele que for o mais apegado às suas percepções sensíveis como índice de realidade, terá que aceitar que não só é possível uma travessia entre o simplesmente imaginado para o substancialmente concreto, como ela é exuberantemente comum.
Ao falarmos do sensível, a idéia que vem à mente é daquilo que pode ser visto, ouvido e tocado. O espectro dos sentidos é mais amplo do que estas sensações, porém, mesmo considerando todas as probabilidades sensoriais, temos que levar em conta outros elementos componentes das nossas experiências. David Hume, no seu clássico “Investigação sobre o Entendimento Humano”, já colocava um conceito interessante, também utilizado por Bergson e Deleuze, a intensidade.
Este filósofo escocês, como bom empirista que era (talvez o maior de todos), dava um valor substancial às sensações. Muitos falariam da importância que os empiristas atribuíam aos sentidos. Aqui creio haver um certo descaminho, pois sensações e sentidos são duas coisas bastante distintas. Enquanto os sentidos são normalmente compreendidos como condições de possibilidade da experiência sensível, as sensações, a princípio, seriam já um fruto desta experiência, algo como uma conseqüência da abertura proporcionada pelos sentidos. Seria assim se tudo o que sentimos pudesse ser reduzido a percepções sensoriais, mas, por exemplo, a uma imagem atribuímos uma série de coisas, inclusive algumas que não estão nas coisas em si, mas em nós mesmos. É o caso das emoções.
Hume não ignorava as emoções, considerando-as tão vivas quando as imagens percebidas pelos olhos ou os sons percebidos pelos ouvidos. Ele fazia uma distinção entre idéias e impressões, considerando as primeiras como evocações das segundas. A impressão é o sentimento vívido, forte, aquele que ocorre no momento. A idéia é a lembrança, a imagem do que foi experienciado. No seu entendimento, qual era a diferença entre as duas? A intensidade.
Sabemos que, como dito acima, as sensações não se esgotam em uma simples reprodução do objeto. Ao contemplarmos uma paisagem que consideramos bela, mais do que a reprodução da imagem em nossa mente, surge toda uma gama de sensações que conferem novas dimensões à experiência, tornando-a mais rica e densa, aumentando a sua intensidade. Então a simples reprodução dos objetos traz consigo uma indiferença e banalização do objeto, uma experiência de menor intensidade.
Postas as coisas desta forma, podemos perceber que a idéia do concreto em si, na sua perspectiva mais próxima do senso comum, traz consigo uma concepção pobre da experiência real, pois identificar o tangível como índice de realidade, é desprezar todas as possibilidades intrínsecas à percepção, próprias da existência humana, é também, por outra forma, o achatamento das experiências, através da negação das suas intensidades.
Embora hesitemos em aceitar, o concreto é o nosso suporte para construção da imagem do mundo que permite conduzirmos a vida dentro da órbita da utilidade, condição essencial para a sobrevivência da espécie, ele não é a realidade em si, é mais uma imagem que usamos como referencial. Isto em si não é problemático, senão necessário. O problema surge quando tomamos a imagem pela coisa e, a título de sermos realistas, insuflados pela insegurança de quem teme precipitar-se no vazio, construímos grossas amarras que não tem outro propósito senão diminuir o tamanho de nossa existência e tornas as nossas vidas pequenas, miseráveis, sem cores e nem brilho e isto parece ser bastante concreto.