27 de fev. de 2006

Deuses, Heróis... e Ídolos

Dizemos, normalmente, com ares de grande sabedoria, que o homem primitivo, por não conhecer e compreender a forma segundo a qual se davam os fenômenos naturais, transformou-os em deuses.
Afirmar simplesmente que, na ausência do entendimento, sobrevém uma atitude tida como obscurantista creio que é uma mostra de propensão às explicações simples e incompletas para substituir a ignorância, ou seja, algo do mesmo tipo da solução que imaginamos que os primitivos tenham desenvolvido para explicar as chuvas.
Não julgo de todo improvável que culturas ancestrais tenham estabelecido com a natureza uma relação religiosa, mas reduzir a questão da forma como usualmente acontece é trocar o silêncio por algo que não lhe é substancialmente superior. Inclusive porque a própria religiosidade é um assunto complexo, sendo tratado de forma simplória por aqueles que preferem negar o que não entendem.
Mais interessante e esclarecedor aqui é tentar compreender o que, necessariamente, poderia levar o ser humano, que vivia continuamente a confrontação com a sobrevivência, a criar interpretações calcadas em elementos transcendentes para o seu cotidiano. Da mesma maneira que a gênese dos deuses, ao meu ver, surge apenas como uma hipótese, aprofundar o entendimento do desdobramento existencial aqui envolvido nada mais é do que um exercício de imaginação. Por isso tento imaginar o sentimento que mobilizava aquele que, diante dos fenômenos que o cercavam, buscava acima de tudo continuar existindo.
Se formos considerar a pirâmide das necessidades de Maslow, podemos notar que as necessidades básicas do ser humano, tanto quanto essenciais, são poucas e, aparentemente, simples: comida, água e abrigo. Na aurora da humanidade, a batalha cotidiana era justamente tendo em vista saciar estas necessidades, pelo fato de nunca estarem garantidas.
Numa situação assim, a vida humana mantém-se em uma condição delicada e instável. As ameaças são muitas e originam-se de diversos pontos, sendo que nenhum destes é controlado. A tensão contínua de manutenção da vida traz consigo a noção de impotência e não está descartada possibilidade de que esta seja superada pela crença em alguma força que possa sobrepor-se a este sentimento, exercendo sobre os elementos ameaçadores um controle maior e mais efetivo. Não identificando em nenhuma entidade tangível a potência ideal, ela a passa a ser buscada em algo que não é percebido de forma direta e, daí, a migração para o sentido de transcendência. Transcendência entendida simples e objetivamente como aquilo que transcende a percepção direta, projetando-se em algo que pode ser somente intuído ou imaginado.
Com o passar dos séculos, as diversas culturas humanas buscaram aperfeiçoar-se na arte de garantir comida, água e abrigo, ao mesmo tempo em que buscavam impor-se diante da natureza. Sabemos, porém, que as necessidades possuem uma cadeia de desenvolvimento, progredindo com relativa sofisticação. Portanto não poderíamos descartar a hipótese de que a evolução de nossas necessidades trouxesse consigo a alteração das concepções do divino.
Seria precipitado ver nas figuras dos deuses e heróis presentes na mitologia grega a projeção dos anseios de um povo? Hércules e a sua força não representariam a relatividade da força humana, diante da grandeza do mundo? No próprio mito de Prometeu, conta-se que seu irmão Epimeteu, encarregado de distribuir os dons entre os animais, distribuiu todos, não sobrando nenhum para o homem que ficou por último, não sendo, por isso, nem o mais veloz ou o mais forte dos seres. Não está aqui implícita sensação de impotência humana? Os deuses gregos, por sua vez, não eram muito diferentes dos homens. Ficavam irados, coléricos ou alegres. Tinham ciúme, paixão, volúpia, cobiça, luxúria e inveja. Não eram muito melhores do que os homens, embora valorizassem a virtude. O que os tornava deuses, então? Acima de tudo, eram imortais. Além disso, possuíam dons superiores que lhes permitiam conceder aos humanos dons e condições para suplantarem eventuais limitações comuns à maioria da espécie. Não vemos aqui a impotência humana refletida na imagem dos deuses? Curiosamente, não incomodava aos gregos que seus deuses tivessem algumas das marcas da imperfeição humana, suportavam as fraquezas de caráter, mas não a falta de poder.
Passados tantos séculos e tantas transformações, não creio que tenha havido modificações tão substancias acerca do nosso comportamento e das nossas predisposições. Os mais apressados diriam que é óbvia a simples substituição das figuras dos deuses e a conseqüente manutenção das crenças, sempre com roupagens diferentes. Sim e não.
Pressupomos, de forma genérica, que aqueles cultos foram substituídos pelas grandes religiões atuais, tais como o cristianismo, o judaísmo, o islamismo ou o budismo. O que não percebemos de maneira direta é que, mais do que as religiões instituídas, ocupa um lugar destacado na moderna mitologia o culto das personalidades. Com isso quero me referir a atores, músicos, políticos, esportistas e celebridades em geral.
As religiões institucionalizadas possuem rituais, símbolos, organização e estruturas que permitem com que sejam identificadas facilmente. O mesmo não acontece com o culto informal dos “ídolos” contemporâneos e talvez este seja o fator que faz com que este fenômeno não tenha suficiente atenção e quando o consideramos é como algo pequeno, despido de qualquer importância.
Se fôssemos atribuir a mesma linha de pensamento adotada antes, associando o sentimento de impotência com a mitificação e o culto, poderíamos abrir caminhos interessantes para novos questionamentos.
O culto da celebridade possui meios próprios para a sua criação, desenvolvimento e manutenção e acredito que o mais representativo destes meios é aquilo que denominamos mídia. Os diversos meios de comunicação, juntamente com a participação dos grupos sociais, acaba por transformar em domínio público a singularidade de uma existência individual. Entretanto, esta trajetória individual, na maioria dos casos das figuras cultuadas, é habilidosamente desbastada de certos elementos aparentemente desagradáveis, sendo que mesmo estes, quando aqui apresentados, adquirem conotações distintas das usuais.
Precisamos sempre entender que o apelo de sobrevivência é contínua, algo que não há como ser apagado ou negligenciado. É um impulso puro e indefinível, muitas vezes sequer pressentido, sendo acobertado por uma série de significados que engendramos para justificar os nossos atos. Em existindo este impulso, pela própria característica de fluxo e movimento que lhe é próprio a sua natureza, não possui uma forma ou um sentido definido pela nossa consciência, manifestando-se pelas formas como interpretamos e vivenciamos a nossa existência.
Se em épocas remotas a ameaça manifestava-se através dos animais, das intempéries e da dificuldade em obter alimento e água, atualmente as pessoas sentem-se ameaçadas por outros fatores. São as contas, o emprego, a violência urbana e os desejos não satisfeitos. As buscas por ascensão e aceitação social, por amor, sucesso e realização profissional. Os dilemas éticos, o medo, a angústia e a ansiedade. Elementos tão comuns ao cotidiano de todos nós. É neste cenário, então, que o ídolo, a atual reencarnação dos deuses e heróis míticos, aparece como aquele acima dos problemas do homem comum.
A imagem construída e cultuada nega a miríade de nuances que caracteriza a particularidade e a singularidade da vida de cada ser humano. O ídolo é uma figura mais simples, menos caleidoscópica e multidimensionada, figura paradoxal, porque menos intensa em sua profundidade interior, ao mesmo tempo em que de ampla intensidade na sua dimensão exterior e na forma como afeta os outros. Um personagem, uma criação. Ídolo cultuado justamente porque aparenta não padecer dos males que afetam os outros. O ídolo não paga aluguel. Não conta o dinheiro para ir ao supermercado, ao restaurante ou ao cinema. Ele não é rejeitado amorosamente, não é ignorado ou tratado com indiferença. Ele é um sucesso, uma referência, um orgulho para a sua família. Todos tratam-no com deferência, respeito e devoção. Em suma, aos nossos olhos ele não é impotente diante da vida.
Se apelarmos ao nosso bom senso, perceberemos que, além da alegoria da nossa impotência, o ídolo é um ser humano e, ao seu modo, traz consigo toda a amplitude existencial que esta condição acarreta. O que é espantosamente normal na nossa forma de encarar a vida é que acreditamos que as insatisfações tem como razão específica sempre algo que não possuímos. Talvez seja possível que aquilo que mais nos falta não sejam os elementos cobiçados em imagens difusas e irreais, mas apenas ousadia para o diferente e humildade para aceitar que nada é mais natural na vida do que as dificuldades e os reveses, ou vocês acham que foi fácil sair do útero, aprender a ver, a ouvir, a falar e a andar?