7 de fev. de 2006

Insatisfeitos

Adão e Eva viviam mais ou menos o "felizes para sempre" quando o caldo entornou. Ao que tudo indica, não havia velhice, não havia doença, não havia preocupações ou sofrimento. Podemos, inclusive, imaginar que não havia privações.
Olhares contemporâneos podem fazer crer que o deslize do jovem casal possa ter se dado por surto de tédio. Assim como não havia os dissabores da existência humana, é possível que também não houvesse os seus prazeres. Quem sabe eles sentissem a falta dos automóveis, trânsito, telefones celulares, internet, roupas de grife, baladas, sexo inseguro e novela. Eram somente dois e todos sabem o que a convivência contínua entre duas pessoas pode fazer. Quer queiram ou não, as pessoas acabam por conhecer-se cada vez mais e isto é perigoso. Ou quem sabe os recém-criados espécimes, como figuras não suficientemente aperfeiçoadas, acabaram por encontrar uma das mais incisivas de suas imperfeições: a insatisfação congênita.
Como os adolescentes que vivem a procurar contrariedades na vida, é bem possível que estes nossos ancestrais tenham incorrido no erro de serem precipitados em seu julgamento. Há um dito popular que sentencia "a grama do vizinho é sempre mais verde". Neste caso, é a sabedoria popular afirmando que, além de termos dificuldade em dar valor ao que temos, vivemos procurando o que não temos e, se o que não temos é desgraça e sofrimento, então tratemos de achá-los. Foi isso o que fizeram aqueles que, segundo a Bíblia, eram os dois primeiros humanos existentes. Tanto quanto um precedente estatisticamente impressionante (naquele momento, 100% da população ocupou-se de, deliberadamente, ser expulsa do paraíso), esta situação traz consigo uma série de conotações simbólicas bastante expressivas.
É natural pressupor nesta altura que, se carregamos alguma maldição, ela não é o pecado original, mas uma tendência incômoda de estragar o que está indo bem e provocar a nossa própria desgraça. Todavia, um pensamento assim, além de pouco contribuir para o nosso alívio, revela mais um pendor pelo trágico e pela auto-piedade que a constatação de uma verdade indiscutível.
A insatisfação do homem diante de si mesmo e da sua vida revela o caráter dinâmico que é íntrínseco a sua natureza. O espírito humano não consegue furtar-se a esta compulsão pelo movimento. Entretanto, pensar que movimento e insatisfação constituem-se, sob esta perspectiva, como sinônimos ou componentes indissociáveis de um quadro inevitável é recorrer a uma perspectiva limitada para compreender a existência. Dizer que algo não existe porque não o conhecemos ou que seja impossível porque não conseguimos fazê-lo são distinções sutis que revelam a forma como reduzimos a nossa percepção, considerando esta como algo pressuposto, rígido e inalterável. Não acredito nisso. Podemos avançar em nosso discernimento e isto só é possível aceitando que, tanto quanto ele é limitado, é também propenso a um processo de evolução contínua.
Considerando as coisas desta forma, creio ser inadequado afirmar que a insatisfação seja própria do movimento natural do nosso espírito, porque, ao que tudo indica, é mais provável que ela seja própria do tipo de movimento que "imprimimos" ao nosso espírito. Sendo assim, já não interessa se Adão e Eva fizeram certo ou errado comendo da fruta da árvore do conhecimento do bem e do mal, mas, acima de tudo, se eles sabiam o que estavam fazendo. É curioso pensar que só teriam discernimento suficiente para avaliar o seu ato se antes tivessem comido a fruta que eles não deveriam ter comido. Então parece certo que não podemos culpá-los pelo seu desvio mais do que culpamos uma criança por uma desobediência a seus pais. Nós, por outro lado, infelizmente, não podemos dispor da mesma desculpa.