21 de jul. de 2006

Eles empre sabem

Dia 30 de junho de 2006, 16 horas no horário de Brasília. Começa a rolar a bola e a seleção brasileira, um dos nossos únicos orgulhos nacionais, diz que vai buscar, contra a França, a revanche pela derrota na final da Copa do Mundo de 1998. O sonho brasileiro durou uns 10 minutos, dali em diante seguiu-se o nervosismo, a aflição e a esperança de um milagre que nunca viria, tudo para esconder de nós mesmos o que já sabíamos: não havia como aquele time ganhar. Mas se o destino, por teimosia ou mero capricho, lhe concedesse a vitória, com certeza não a mereceria.
Como futebol, no Brasil, é uma forma de religião, onde cada time é uma espécie de seita e a Copa do Mundo um ato ecumênico, perder é motivo para todo o tipo de ruptura. Se perder já é uma coisa ruim, imagine perder parecendo que cada jogador tinha tomado uma caixa de Prozac? Crise séria... A culpa é do treinador, é dos jogadores, do coordenador técnico, do presidente da CBF, da Nike, da CIA, do efeito estufa, dos Illuminati, do Lex Luthor e sabe-se lá de quem mais. Não interessa, alguém é culpado e tem que pagar, nem que não se saiba exatamente como.
Afora toda a especulação e toda a imaginação envolvida em questão tão movida pela paixão, seria absurdo dizer que o grupo que construiu com tanto esmero um belo exemplo de fiasco não possuía um líder ou, pelo menos, um encarregado. Vozes que se deliciam com teorias conspiratórias dirão que este encarregado era um fantoche na mão de interesses escusos. Se for assim, o tal fantoche recebe um bom salário justamente para levar a culpa quando as coisas dão errado, é pago para ser o Judas que alimentará o fogo do final da festa. De uma forma ou de outra, ele era o responsável e é a ele que devemos pedir explicações, falo do técnico.
Dizem que, no Brasil, quando a coisa vai mal é sempre o técnico que paga o pato. Mas quem iremos culpar, senão aquele que escolhe a comissão técnica, convoca os jogadores, escolhe os titulares, estabelece o esquema de jogo, comanda os treinamentos, diz quem entra e quem sai, qual é o horário de trabalho e quando é dia de folga? Há muitos chefes que adoram impor a sua vontade aos outros, brincar com a autoridade, ser “o cara”, mas na hora que o navio está afundando, quase todos se disfarçam de marinheiro para não ter que afundar junto. Portanto não espanta que mais um “responsável” esteja usando uma saída dos fundos para fugir à turba, prática comum há milênios. O que espanta é que, mesmo em pleno século XXI, há os acólitos que querem proteger um partido que não é seu. Então ouvimos “conhecedores” do esporte nacional dizendo que o tal técnico é uma pessoa inteligente, experiente e competente, deve ter havido alguma coisa, não é possível que ele não tenha percebido o erro.
Bom... Primeiramente, pessoas inteligentes também erram e isto não é demérito. Arrogância, pretensão e descaso podem ser considerados deméritos, mas não o erro em si. A questão mais interessante aqui vai além do próprio universo futebolístico e mostra-se como projeção de um comportamento comum. O problema é que nós acreditamos que “eles” sempre sabem. Sabem o quê? Sabem o que estão fazendo.
Quando vemos um país como o nosso, com tanta corrupção, com tanta violência e tanta desigualdade, olhamos ao redor e pensamos que o nosso supremo mandatário não resolve os problemas porque tem má-fé, é um crápula, um corrupto, há interesses escusos, há grupos dominantes que controlam a sociedade e outras coisas do gênero. Sinceramente, penso que até deve haver tudo isso ao mesmo tempo, só que nunca consideramos o que deveria ser considerado em primeiro lugar: talvez ele não saiba o que esteja fazendo. Sempre especulamos inúmeras teorias, menos aquela na qual os que comandam são ineptos, incapazes e tão perplexos quanto nós que olhamos de longe e não entendemos nada. Há algo mais comum que o ser humano produzir uma série de atitudes idiotas?
Os que seguem olham de baixo os que são seguidos – sejam os políticos, as celebridades, os empresários, aqueles que parecem emanar uma aura de poder e auto-suficiência – e sempre pensam que eles sabem o que estão fazendo. Pensamento ridículo este, posto que quase nunca as pessoas sabem o que estão fazendo. Ainda mais quando extrapolam e não são mais somente responsáveis pelos seus anseios, mas passam a assumir o das outras pessoas.
O racionalismo iluminista conduziu a humanidade por um caminho onde passamos a acreditar numa infinita e crescente capacidade do homem para dominar a realidade. Paralelo a isto, o desdobramento do desenvolvimento social, econômico e do conhecimento sobre uma matriz influenciada por esta ótica do esclarecimento, quiçá plasmada sobre a influência do arquétipo de herói que, segundo Jung, habita a estruturação do psiquismo humano, produziu uma cepa de soberba embebida em individualismo. Em outras palavras, criamos o ideal do homem capaz, empreendedor, que sabe e resolve. Acreditamos que esta figura mítica surgirá na incerteza de tempos escuros e trará as soluções, resolverá os problemas, colocará ordem nas coisas. Mas não precisamos pensar em situações de grande perigo e comoção para conceber a figura solitária do herói, cada pequeno universo possui os seus problemas, contradições e, por que não dizer, heróis. O ponto principal é o fato de acreditarmos na idéia de pessoas que, individualmente, podem resolver situações que não dizem respeito somente a elas. Então, pensamos que aqueles que possuem mais poder do que nós, possuem também maior discernimento, maior capacidade para compreender a dimensão dos problemas que afligem a todos, para elaborar soluções e estabelecer uma ordem idealizada, onde na verdade cada qual tem seu sonho e somente a ansiedade é compartilhada.
O perigo reside no fato de que algumas pessoas passam a acreditar nesta fábula e julgam-se realmente superiores aos demais. Afinal de contas eles não são os heróis? Capazes de grandes façanhas e dotados de habilidades invulgares, fazem da sua imagem projetada o seu melhor amigo e trocam os espelhos por quadros devidamente retocados.
O grau de complexidade atingido pelas sociedades contemporâneas já deveria ter nos ensinado que, embora muitos possam destacar-se em diversas atividades, pouco podem as pessoas atuando de forma isolada. Mesmo o craque no futebol não resolve sozinho a parada se não tiver auxílio dos outros dez. Ele pode ser o diferencial, mas só é diferencial em um bom grupo, não sozinho.
Talvez possam me julgar um tanto pessimista, um tanto descrente, só que, na minha opinião, “eles” nem sempre sabem o que estão fazendo.