2 de jul. de 2006

Lugar que não existe

”Não confio em utopias. O comunismo é utópico, ao dizer que pode haver igualitarismo e riqueza ao mesmo tempo. As pessoas não trabalham com entusiasmo para aumentar o bem-estar alheio.” - Victoria Curzon Price, presidente da Mont Pelerin Society

Thomas More perdeu a cabeça. Não, ele não perdeu o juízo, literalmente perdeu a cabeça. Coube-lhe a triste sina de servir a um monarca demasiadamente caprichoso.
Freqüentemente, aqueles que, seja por artes do acaso ou por mérito próprio, desfrutam de uma posição que lhes concede poder sobre outras pessoas, vivem em uma espécie de realidade alternativa. Ocupam-se exageradamente com seus delirantes caprichos. Estes caprichos não são estáticos, inertes. Ao contrário, adquirem vida e corpo, podendo atingir envergadura suficiente para consumir os incautos que lhes deram azo.
Não me compete dizer se Henrique VIII era desta cepa, mas creio não estar sendo demasiado rigoroso ao ver nele um exemplo típico de déspota sanguinário. Diz-se que tal rei tinha a fixação pela idéia de gerar um herdeiro do sexo masculino. As contingências encarregaram-se de mostrar que seu poder não era tanto, pois apesar de não poupar cabeças para atingir tal objetivo, jamais teve um filho homem.
Casado com a rainha Catarina, Henrique VIII enamorou-se da jovem Ana Bolena. Mistura-se realeza, casamento, paixão, falta de escrúpulo e o ávido desejo por um sucessor varão e teremos um cenário bastante promissor.
O rei decide “desfazer” seu casamento para casar-se com a “outra”. O papa torce o nariz e resolve dizer que, pelo menos desta vez, seria bom que os poderosos seguissem algumas regras. O rei quer. A igreja não cede. O povo é crente. Como resolver este impasse? Muito simples, cria-se a própria igreja, de modo que a fé não fique mais atrapalhando as “questões de estado”.
Tudo resolvido? Quase... Um certo chanceler, conhecido por Sir Thomas, soldadinho do passo certo, acredita que este arranjo é errado e imoral. Tal figura já atraía alguma atenção por suas excentricidades. Havia escrito um livro, história fictícia onde criticava a propriedade e via virtude no trabalho. Alguns consideravam aquilo uma piada de mau gosto. Outros tentavam convencer de que não era brincadeira, o cara estava falando sério.
Diante do impasse, o tal Thomas More não faz muito alarde, apenas insiste teimosamente em não dar a sua benção. Afinal de contas, impedir é uma coisa, não aprovar é outra. Acontece que para o rei não bastava, ele algo mais sólido, o juramento de lealdade. Por mais estranho que possa parecer ao nosso tempo, vontade forte e determinação não são prerrogativas únicas de quem detém o poder, embora para estes seja sempre mais fácil praticar a teimosia. Num confronto onde um entrava com o machado e o outro com o pescoço, o desfecho da situação era óbvio e inevitável.
A história registra que Thomas More, como católico convicto, não aceitou o divórcio forçado de Henrique VIII, muito menos toda a situação que o envolveu. Como humanista que era, nos faz suspeitar que talvez a questão não estivesse restrita simplesmente à fidelidade a Roma, mas quem vai saber.
Ao contrário do que se possa pensar, não foi a morte como um mártir e a posterior santificação que lhe garantiram um lugar na história, mas o seu livro A Utopia. Obra de ficção que narra a existência da ilha chamada Utopia e de sua organização social. Através da descrição de uma sociedade imaginária, é tecida a crítica dos costumes, dos excessos dos governantes, assim como do parasitismo dos mais favorecidos, da vaidade, do orgulho e da puerilidade.
Desde então, o termo utopia passou a designar toda a forma de sociedade ideal, onde haveria paz, harmonia e felicidade entre os homens. Como isso não é algo que seja conhecido (muitos acreditam ser impossível), utopia ganhou os significados de aquilo que é somente imaginário, inalcançável, quimera, ilusão. Nada mais natural, visto que utopia , em grego, significa “não lugar” ou “lugar que não existe”.
Hoje, a palavra utopia não perdeu estes sentidos, apenas acrescentou a eles o caráter pejorativo. Este desencanto não é pela palavra, ele é mais amplo, mais abrangente. Engloba o mundo, a sociedade, o cotidiano e, quando há coragem suficiente, o desencanto consigo mesmo. Creio que sempre terei a dúvida se o chamado realismo, encarado como obsessão por aquilo que é considerado concreto e tangível, é expressão de uma personalidade suficientemente forte para abrir mão de suas ilusões em prol de atingir a verdade das coisas ou apenas o ato covarde de quem abdica de pensar o melhor por temer a frustração e o desapontamento.
Não vejo motivos para considerar o desencanto como um fenômeno injustificado, entretanto transformá-lo em atitude prática ou uma propedêutica para qualquer assunto é assumir a impotência do homem diante de sua humanidade. Podemos, de forma coerente, não acreditar em possibilidades ditas utópicas, entendendo este acreditar como uma fé cega e incondicional àquilo que é somente idealizado. Agora, se entendermos este acreditar como aceitar novas possibilidades e, eventualmente, apostar nelas, então esta ausência de confiança passa a ser inércia, omissão e pequenez. Pouco alçado como sou, pelo parco entendimento que tenho das coisas, só consigo imaginar que a maior das utopias é acreditar que seja possível conciliar o bem de todos com a ganância de cada um.