29 de set. de 2006

A ignorância das massas

A idéia de que uma pessoa possa representar legitimamente outra é algo complexo. Pretender que alguém possa representar uma vontade que freqüentemente pouco compreende a si mesma é uma atitude que inspira cautela. É claro que, dado o grau de complexidade das sociedades atuais, certas atividades tornam-se virtuais, pela impossibilidade de serem executadas de forma direta. É o caso do exercício político, quando pensado como instância de governo daquilo que é público.

A idéia da democracia representativa corresponde a dois aspectos bem claros: o princípio de que todos possuem o mesmo direito de arbitrar acerca da coisa pública e a impossibilidade material ou institucional de todos exercerem este direito de fato. Considerados tais aspectos, a democracia representativa teria como intenção propiciar que, não podendo haver, de forma direta, a participação de todos no exercício do poder para governar o que é público, esta participação seria indireta, ou seja, os diversos grupos sociais elegeriam representantes que defenderiam os seus interesses. A própria noção de tripartição dos poderes considerou-se como medida extra de salvaguarda, onde o governo é dividido para que melhor fiscalize a si próprio.

A verdade é que este sistema, embora pareça funcionar bem teoricamente, não é à prova das falhas de caráter dos homens e se vivemos em meio a uma espécie de inferno cotidiano, boa parte disto se deve à forma como o país é governado. Muitos são os problemas que podem ser considerados de ordem pública: desigualdade social, exploração, violência, falta de assistência médica, falta de moradia, falta de emprego, destruição do meio ambiente, entre outros, e todos se constituem em motivo de desconforto para aquele que não viva em um estado de alienação em relação à sociedade do qual faz parte.

Havendo tais problemas e relacionando-os com o exercício do governo, sendo este de forma representativa, é natural que, em geral, recaia sobre os representantes do povo a responsabilidade pelos mesmos. Some-se a estes fatos, ainda, a tradição da corrupção e da prevaricação, antes falados a boca pequena e hoje escancarados para quem quiser ou não ver, matéria-prima para o entretenimento dos cidadãos de todas as idades, obra e graça do circus midiaticus.

Se o governo é exercido por representantes do povo, alçados a esta categoria pelos votos de seus pares, é natural questionar se os cidadãos que votam estão fazendo um uso adequado dos seus direitos inalienáveis de participação política. Sob certo aspecto, os representantes do povo são considerados como criminosos, na medida em que falharam gravemente com as suas obrigações, e aqueles que os elegeram aparecem, então, como cúmplices. A cumplicidade é mais fácil de ser compreendida quando há alguma vantagem para o co-autor do crime. Para o governante que é tido como criminoso, é possível construir uma imagem mais ou menos aproximada das vantagens que este pode auferir do espólio da coisa pública que, por pertencer a todos, parece não pertencer a ninguém. Mas o eleitor que é seu cúmplice, o que ganha com isso? A prática comprova que, a menos que seja suficientemente próximo para usufruir da sangria, a sua paga são os citados problemas que afligem toda a sociedade. O cúmplice, então, não peca por má-fé, peca por estupidez.

São eleitos os que possuem mais votos. A maior parte dos votos, obviamente, são oriundos da maioria. A maioria, em um país como o nosso, é pobre, de baixo grau de instrução e com pouco acesso à educação. A maioria não compra nem lê jornais ou livros. A maioria não fala inglês, mas também não fala um português “bonito”. A maioria não come comida de qualidade (muitos sequer conseguem comer o suficiente). A maioria não escuta música de qualidade, não assiste a filmes de qualidade. A maioria tem pouco gosto pelo trabalho e, muitas vezes, um temperamento imoral e desleal. A maioria é uma massa ignara que possui o direito de votar e arrasta consigo o destino daqueles que são melhores do que ela em valor e sofisticação. A razão do problema está descoberta: são culpados os políticos, pela sua cupidez e egoísmo, e a maioria dos eleitores, os pobres, pela sua ignorância e rudeza.

Este diagnóstico, mesmo quando não formulado, assim, claramente, passa pela cabeça de grande parte daqueles que tiveram oportunidade de aprender a ler e escrever razoavelmente, os notáveis que ocupam o espaço apertado de uma minoria que tem condições de desfrutar das maravilhas do mundo contemporâneo e a base, imediatamente inferior, que vive a delirar com a possibilidade fazer parte desta elite. Aqueles que estão devidamente paramentados para a disputa darwinista pela sobrevivência, tão própria da atual sociedade capitalista. Os fortes, que administram empresas e instituições, detentores de posições de prestígio, líderes e exemplo para as suas comunidades; ou os aspirantes que de longe ambicionam os lugares dos que estão sobre as suas cabeças. Enfim, falo daqueles que, ao contrário das massas, tiveram um maior acesso à educação ou a uma melhor condição econômica. Aqueles que, por esforço próprio ou por auxílio de outrem, possuem condições de ler jornais e livros, aqueles que, no seu entendimento próprio, sabem como são as coisas, são instruídos. Pessoas que, normalmente, vêem na ignorância do povo a razão do atraso. Em suma, aqueles que sabem escolher bem os seus representantes.

Poderíamos pensar que esta forma de interpretar os fatos seria de uso exclusivo das elites que dominam o cenário político e econômico atual, pois historicamente toda a casta ou classe social detentora do poder sempre engendrou seus mecanismos para manter o status quo vigente. Porém, se tal visão ficasse restrita a um grupo reduzido, perderia a sua eficácia. Na prática, compartilham da mesma opinião uma significativa proporção daqueles que compõem a chamada classe média e que são considerados como pessoas com opinião própria e espírito crítico. Stuart Mill considera que todos os homens necessitam de uma justificativa moral para os seus atos e qual a melhor justificativa que dizer que a desgraça dos desgraçados é culpa deles mesmos.

Rosseau escreveu certa vez que os ricos consolam-se do mal que fazem aos pobres, acreditando que estes são suficientemente estúpidos para não sentirem nada. Palavras tão fortes quanto verdadeiras. É uma desculpa covarde justificar a própria omissão e indiferença, afirmando que a ignorância dos que são vilipendiados justifica toda a forma de exploração a que são submetidos.

Muitas vezes, as massas concederam generosas oportunidades à opressão e à infâmia, como bem atesta a história e não seria motivo de grande espanto se isto tornasse a acontecer, embora nunca tivessem feito agido sozinhas ou em proveito próprio. Porém, ao meu ver, é uma grande hipocrisia tributar ao nosso povo (porque os “melhores” não se julgam “povo”), de forma única e exclusiva, a carga de misérias que o tem afligido. Fazer isto significa pôr de lado o fato de que as elites de nosso país padecem, também, de uma ignorância sistemática, mais culpável, mais criminosa, pois uma coisa é ter um discernimento falho quando faltaram todas as oportunidades privilegiadas de aprendizado, outra é padecer do mesmo mal, onde, mesmo quando houve sacrifício, foi possível avançar mais.

Celebrizamos em nosso país a arte de fomentar as distorções mais absurdas, como a corrupção, a ostentação provinciana e o desperdício, cultivados na vizinhança da pobreza, da fome, das necessidades básicas não satisfeitas. Diante disso, como estranhar o fato de que os mais aquinhoados, aqueles que se consideram melhores e mais aptos para julgar, sejam tão incapazes para fazer uma interpretação suficientemente ampla e esclarecida da realidade? Podemos chamar de esclarecido alguém cuja interpretação da realidade é marcada pelo preconceito e a estreiteza, senão por um egoísmo e indiferença quase que fascistas? Por vezes tenho a impressão de que os brasileiros possuem uma aversão à democracia, pela forma como deploram as discussões, os consensos e a multiplicidade de pontos de vistas. Vivem a sonhar com a figura idealizada do herói que virá salvar a nação de sua decadência e elevá-la ao patamar de glória que faz jus por um desígnio divino, deixando de ser a eterna promessa nunca realizada. O que habita neste delírio coletivo é o desejo não tão secreto de encontrar um bom caudilho. Quem sabe, um ditador esclarecido, alheios à própria contradição implícita de tal alegoria. Escravos à procura de um senhor, porque visões unívocas dão sempre menos trabalho.

Assusta-me menos a propalada ignorância e culpabilidade do povo na decisão dos rumos de nosso país que a ignorância e culpabilidade da elite, dos “esclarecidos”. Enquanto os primeiros já vivem com a pecha de ralé, estes últimos acreditam terem suficiente conhecimento e discernimento para fazer boas escolhas, quando, em geral, todo o seu exercício político resume-se a duas coisas: periodicamente, a cada pleito, apertar alguns botões e lamuriar-se o resto do tempo por tudo que está errado. Nutrem-se diariamente com as informações distorcidas e fragmentárias produzidas por veículos de comunicação mal intencionados e comprometidos com a ordem das coisas, estudam para conseguir um diploma que faculte consumir a sua parte do saque, passando ao largo da educação e da cultura, propriamente ditas.

Acima de tudo, antes de falar da ignorância das massas e de como elas não sabem escolher os seus candidatos, tenhamos todos nós um minuto de lucidez para assumir que somos politicamente omissos e preguiçosos, que, no fundo, sabemos muito pouco sobre o que acontece de fato e, daquilo que sabemos, temos uma compreensão pobre e superficial. Antes de refugiar-nos no dogma da ignorância alheia, tomemos consciência daquela que nos pertence e que, insistentemente, não quer nos abandonar. Isto, por si só, já seria um grande avanço, porque é praticamente impossível resolver um problema se não reconhecermos que ele existe. Não nos esqueçamos que, enquanto estamos tomados pelo torpor, há interesses que ignoramos sendo muito bem defendidos, diariamente, nas casas onde as decisões que influenciam as nossas vidas são tomadas. O espaço aberto e sem dono sempre é o mais fácil de ser ocupado.