6 de out. de 2006

Convicções

Há um dito popular que recomenda evitar discussões sobre política, futebol e religião. O sentido implícito de tal recomendação é a prudência e isto se deve à natureza polêmica destes temas, embora acredite que esta recomendação justifica-se menos pelos temas e mais pela forma como, em geral, são tratados.
Quando duas pessoas estabelecem uma relação de diálogo, podem discutir acerca de questões sobre as quais estão de acordo, sobre as quais discordam em alguns pontos e concordam em outros, ou ainda acerca de questões sobre as quais discordam completamente. Geralmente, todos temos baixa tolerância à discordância em relação aos nossos pontos de vista, entretanto há circunstâncias em que esta tolerância é menor ainda. Nestas situações específicas, somos pouco permeáveis ao poder da argumentação e mais resistentes aos artifícios da persuasão. Notaremos, então, que o que está em jogo não é simplesmente uma opinião, mas sim uma convicção.
As convicções, quer queiramos ou não, em grande parte, são predisposições subjetivas. Mesmo aquele que julga fundamentar as suas convicções em elementos racionais bem construídos, traz no fundo de seus arrazoamentos as inclinações que lhe são próprias. Soma-se a isto as influências que recebe do meio social e as marcas deixadas pelas experiências positivas e negativas que teve ao longo da vida. Portanto, falar em impessoalidade e objetividade como traços a serem buscados na consolidação de nossas convicções, embora pareça, à primeira vista, uma atitude desejável e louvável, soa mais como uma aspiração ufanista. Curiosamente, esta aspiração mostra a sua real necessidade na constatação extrema de que, confrontados com divergências, buscamos maneiras para que as nossas convicções afirmem-se por si mesmas, independentes da nossa veemência e da força que tenhamos de lançar mão para defendê-las.
A sabedoria popular cita a política, o futebol e a religião, porque o fundamento da convicção pessoal que cada um traz acerca destes assuntos raramente é objetiva e, se formos seguir o exposto acima, dificilmente poderia ser. As escolhas pessoais possuem uma multiplicidade de elementos que lhes influenciam, inclusive o interesse próprio. A expressão "ponto de vista" já explicita que a posição pessoal é uma emanação a partir de um ponto, uma posição específica a qual se toma como referência para contemplar a realidade e sabemos que, de cada posição que o observador ocupa, desenha-se uma diferente perspectiva a sua frente. Ao confrontarmos convicções, temos, simultaneamente, o confronto das posições escolhidas para projetar a visão.
Mais do que um simples capricho, o que está em jogo, muitas vezes, é a própria articulação do discurso que desdobra o real e lhe confere significado. Ao atacarmos as convicções de alguém, por mais ridícula que ela possa parecer aos nossos olhos, estamos atacando a estrutura que esta pessoa construiu para atribuir sentido a sua experiência de vida.
Tanto quanto a nossa condição de ser vivo exige que atendamos a algumas necessidades básicas, a condição humana parece exigir o significado. Por vezes tenho a impressão de que, na defesa das nossas convicções, vertemos um grau de energia similar àquele que empregaríamos na defesa da nossa vida, como se o apego a uma pretensa idéia de unidade na consciência também respondesse ao ímpeto de sobrevivência, isto é, a ameaça à consciência e aos seus elementos de construção, entre eles as convicções, adquirem a conotação de ameaça à própria existência.
Diante disso, poderíamos propor algumas questões. Estaríamos condenados a viver na dicotomia entre o confronto contínuo dos que não se aceitam ou a proposição de ilhas isoladas, santuários das convicções inatacáveis? Aceitaríamos o dito popular, evitando todo o assunto que melindre este ou aquele indivíduo, onde acabaríamos descobrindo que não poderíamos discutir acerca de qualquer coisa?
Primeiramente, devo dizer que, no meu entendimento, não existe assunto, por mais polêmico que possa parecer, que não possa ser discutido. A prudência que poderíamos ter ao evitar alguns temas, refere-se mais a um cuidadoso desvio para não despertar a selvageria que acreditamos estar adormecida sob o fino verniz de civilização que usamos para maquiar nossos atos. O problema nunca esteve ou estará nos temas, mas sim na atitude que temos em relação ao outro. Entendo que a nossa própria condição de finitude conduz para uma necessidade de complementaridade, obtida através do intercâmbio com outras pessoas. Em outras palavras, precisamos estabelecer relações com outras pessoas, com o mundo. Precisamos dialogar e este diálogo não pode ficar simplesmente restrito a um fragmento de realidade que julgamos por bem aceitar, ele tem de estender-se para o que não entendemos ainda, para o que está ainda fora do raio de nossa compreensão. Precisamos abrir mão do refúgio que construímos com as nossas restrições e isto não pode ser às custas da aniquilação de si ou do outro.
Se tornarmos a pensar acerca da discussão com o outro, como parte do diálogo que estabelecemos com a própria condição de existir, notaremos que ela só pode ser válida quando estabelecida na base da afirmação de sua condição intrínseca de intercâmbio de espíritos e busca pelo mútuo entendimento, atividade que exige o respeito, a aceitação e a cortesia. Não pode ser constituída em uma relação assimétrica de poder, onde um tenta impor, despoticamente, a sua construção de significado ao outro. Não nos enganemos, muitas das formas de relação que consideramos como equilibradas e normais, onde parece estar presente o diálogo e a convivência harmônica, são manifestações predatórias, onde o predador não regala-se com as vísceras de sua presa, mas com o espólio da imposição de sua visão de mundo e da sua vontade.