25 de mai. de 2007

As cicatrizes

Quando tinha mais ou menos 5 anos de idade, numa brincadeira boba, acabei por dar com a testa em um chão de concreto. Passados tantos anos, esperar que um fato desta natureza possa ser narrado com detalhes e, ainda, que todos estes correspondam à verdade, é uma aspiração ambiciosa demais. Fora raras exceções, as pessoas normalmente tem lembranças enevoadas e fragmentadas desta primeira fase da infância, não acontecendo diferente comigo.
Digo que me recordo do incidente, de ter sido conduzido a um pronto socorro, de ter a minha sobrancelha costurada e de não ter feito qualquer escândalo, mas afirmar com certeza que minhas recordações são lembranças autênticas, como cópias retidas dos acontecimentos passados, isto eu não posso.
Conheço algumas armadilhas que os nossos pensamentos engendram, portanto estou quase seguro que o fato aconteceu, mas não tenho tanta certeza de que ele aconteceu como eu me recordo. Quem garante que não preenchi os lapsos da memória com algumas porções de criação própria, suprimindo eventuais lacunas?
De todo o acontecido fiquei, porém, com uma forma de evidência física, uma cicatriz, um emblema que reforça, quem sabe, a convicção de que aquilo aconteceu mesmo. Tenho, então, esta cicatriz que divide a minha sobrancelha esquerda em duas e deve medir uns 4 ou 5 centímetros. Apesar de, com o passar dos anos, ter me acostumado a ela e passado a tratá-la com relativa indiferença, não há como negar que, de tempos em tempos, encontro-a no lugar de sempre e disposta a recontar a mesma história outra vez, como os velhos marinheiros que, após uma vida em alto mar, vivem "amarrados" à terra firme e vêem no ato de contar incansavelmente as mesmas histórias a única forma de reviver velhas aventuras. A minha cicatriz está lá. Quieta e eloqüente. Sutil e ameaçadora. Ausente e sempre presente.
Entendo que a nossa capacidade de atenção é de tal forma diminuta que dá conta apenas de uma ínfima parte daquilo que temos descortinado ao nosso redor, por isso não me espanta o fato de que nem sempre eu e minha cicatriz troquemos reminiscências. Se pensarmos com alguma coerência à respeito, notaremos que é bastante natural o fato de não termos um inventário atualizado de todas as nossas cicatrizes, seja daquelas que clamam o seu lugar pela evidência física de terem marcado o nosso corpo, seja daquelas que marcaram o nosso espírito e, sob certo aspecto, vivem de forma furtiva e dissimulada em nossas ações e pensamentos.
Sobre as cicatrizes do nosso corpo, que um dia foram feridas e estiveram revestidas de dor, sabemos que o fato de serem cicatrizes, quase sempre representa que não são mais uma ameaça, são sim um símbolo de algo que foi curado e é por isso que podemos usá-las como uma analogia em relação às feridas que temos e curamos em nossa interioridade.
Entendemos a palavra cura como o restabelecimento do organismo a uma condição saudável. Restabelecer é estabelecer novamente, pressupondo que houve uma condição saudável anterior que, de forma geral, é considerada como uma forma de equilíbrio. Associamos ainda, à palavra cura, o sentido de sucesso na luta contra algum mal que nos aflige. A palavra cura, em seu sentido etimológico oriundo do latim, quer dizer cuidado. Então, cura, quando associada ao contexto terapêutico, evoca o cuidado que é necessário para se recuperar a saúde. Acho interessante que, quando tratamos da sanidade, normalmente não usamos a palavra saúde, aparentemente mais apropriada, mas a palavra cura. Pergunto-me se esta prática é fruto de caprichos casuais do fluxo das línguas ou se remete a práticas bem fundamentadas, que uma análise filológica rigorosa pode apurar com precisão. Ou ainda se ela traz embutida a idéia de que, na verdade, a saúde é fruto de um contínuo e incansável processo de "cuidado", sendo que falar cura significa dizer que estamos cuidando, talvez controlando, os nossos males.
Esta última e imaginativa tese cerca os meus pensamentos quando percebo que o anseio que temos de superar os males jamais será saciado. Superar é colocar-se acima de, ultrapassar. Quando pensamos na superação, pensamos também em distanciamento e, se possível, oblívio. A idéia de superar as nossas feridas predispõe que a cicatriz já possa representar uma forma de superação, a cristalização dos males em algo inofensivo, o encapsulamento daquilo que é prejudicial em uma forma anacrônica e de fácil manipulação, a transformação daquilo que ameaça em algo o qual possamos dedicar esquecimento ou indiferença. Desta forma, o mal que é passado já não é mais mal, foi superado.
Tenho estado inclinado a acreditar que de fato não superamos os males, as feridas. Não as abandonamos definitivamente em quartos trancados pelo passado e que jamais serão abertos. Não somos os heróis cuja vitória destrói a fera e apaga a sua existência. As lembranças que trazemos das boas e más experiências podem estar dormentes em espaços recônditos de nossa memória, as suas marcas, por sua vez, parecem manifestar-se em cada pequeno gesto que fazemos. Não superamos os nossos erros, não superamos as nossas mágoas, ressentimentos, medos e traumas. A distância que queremos criar e manter é apenas ilusão, uma simulação que nos tranqüiliza e ajuda a superar a fraqueza.
Podemos pensar diferente e acreditar que somos senhores plenos na arte de escolher o que nos convém lembrar e determinar o que pode nos influenciar ou não e de que maneira. A impressão que fica, entretanto, é que a realidade difere significativamente de tal perspectiva. O esquecimento sobre certas coisas é mais fruto de um gigantesco esforço cotidiano do que algo que aconteça espontaneamente. Muitas das nossas atividades comuns, de nossos objetivos e de nossas aspirações são gestos de esquecimento, são tentativas persistentes de apagar aspectos, ângulos ou parcelas de nossa existência. Não creio ser possível concebermos a vida por uma perspectiva de reversibilidade das experiências, pois a idéia de distanciamento do que já foi traz consigo esta ambição implícita, de superação como decreto de inexistência.
A nossa experiência ordinária demonstra, seja de maneira implícita ou explícita, que há uma permanência do passado no momento presente, entretanto esta permanência não é inerte ou estática. Ela é atuante e constantemente reconstruída de diversas formas, de tal maneira que, mesmo o que poderia ser considerado uma reincidência de eventos, pode se dar por diferentes vias de expressão. A permanência de eventos passados como condicionadores de ações presentes e futuras é um elemento fundamental, por exemplo, na teoria psicanalítica.
Os processos terapêuticos próprios da psicanálise tratam situações traumáticas pela via da assimilação e não da extirpação. Entendo que esta prática já sugere os caminhos que podemos tomar, mesmo quando escolhemos não fazer uso deste tipo de cura. Ao considerar que não apagamos as nossas cicatrizes, assim como o nosso passado e, nele, as coisas que nos marcam, entendo que temos de aprender a conviver com o que somos e com o que fizemos. Isto parece algo simples e fácil de ser feito, porém, dependendo da intensidade como os fatos vivenciados nos afetam, pode transformar-se em uma tarefa gigantesca.
Curiosamente, na minha modesta opinião, acho que a luta interior, que em algumas pessoas é bastante consciente e, na grande maioria, é inconsciente, deve chegar a um ponto onde passe por um processo de reconciliação, ou seja, o momento em que devemos depor as nossas armas e nos reconciliarmos com nós mesmos. Essa reconciliação significa reconciliar-se com as próprias fraquezas e erros, reconciliar-se com os momentos de sofrimento e dor, reconciliar-se com as perdas e os ganhos da vida, reconciliar-se com os fracassos e com as expectativas desmedidas. Tornar-se capaz de conceder a si mesmo um perdão suficientemente efetivo para permitir seguir novos caminhos e descobrir-se mais apto e mais forte para encarar a contínua novidade que é a vida, porque nós nunca superamos as nossas cicatrizes, apenas aprendemos a conviver com elas.