11 de nov. de 2005

Afeição e Dominância

Por vezes penso que sempre retornarei, de várias maneiras diferentes, àquilo que concerne ao poder. No meu entendimento, poder significa capacidade para realizar algo, uma capacidade disponível e da qual se goza com plena liberdade.
A pertinência da questão do poder se revela quando percebemos que o desejo e a vontade, na condição de moventes do agir humano, se dão a existir através de uma relação com o discernimento ou a intuição de potência que trazemos conosco.
Entendo desejo como o impulso de se mover em direção a algo. Entendo vontade como a força que, atuando sobre o pensamento e o agir, nos coloca ou nos retira da direção proposta por um desejo.
Esta relação entre discernimento/intuição de potência e desejo/vontade, de influência claramente espinosista, se estabelece na medida que compreendo ser a limitação uma sensação bastante presente no ser humano, algo que cristaliza aquilo que designamos por finitude. Primeiramente, nos vemos limitados no tempo de existência, mas esta é apenas uma barreira virtual com a qual temos muita dificuldade de conviver. Há dezenas de situações que impõem limitações ao nosso agir e à nossa satisfação, no dia-a-dia. Provavelmente porque o desejo dispõe de certa liberdade de idealização, podendo ser composto, a partir da imaginação, em uma multiplicidade incontável de variações. Entretanto, a capacidade percebida para a consecução destes desejos sempre é limitada.
Neste ponto, parece criar-se um círculo vicioso: deseja-se e confronta-se o desejar com uma limitação de poder em substancializar o desejo e isto, por si só, já constitui-se em gerador do desejo, freqüentemente implícito, de ter mais poder. Seguindo esta linha, na maior parte do tempo desejamos coisas que aumentem o nosso poder para conseguir o que desejamos. Isto encontra eco e um fundamento mais preciso no conceito de conatus de Espinosa, onde, partindo da determinação de que a essência humana é o esforço de perseverar na existência, procuramos tudo o que acreditamos que possa aumentar o poder de, justamente, perseverar na existência.
Coloque-se o indivíduo como eixo central do desejo e da vontade e entendendo o próprio ser humano como um movimento, poderíamos dizer que o fluxo de propagação do poder se daria em dois sentidos, um endógeno e outro exógeno. No primeiro caso, poder sobre si. No segundo, sobre aquilo que o circunda.
A primeira alternativa normalmente é desconsiderada, pois é usual acreditarmos que os desejos são de natureza espontânea e injustificada. Os compreendemos como expressão de indeterminismo, de inconstância e de desordem, não podendo ser enquadrados em qualquer quadro discernível. Ou os seguimos ou os ignoramos, não os explicamos. Aqui, aceitamos tacitamente que não possuímos poder sobre nós mesmos, ou melhor, sobre certas movimentações de nosso espírito.
Não podendo controlar este movimento, deslocamos o nosso anseio para tentar controlar os objetos almejados pelos nossos desejos e, então, o poder se desloca para fora de si, para o mundo. Se acreditamos ser difícil, senão impossível, controlar a nós mesmos, quem dirá controlar o mundo?
É natural que, diante de tal desafio, sobre somente uma profunda intuição de impotência. E como lidamos com isso? Geralmente, criando uma imagem de mundo própria, onde se exerça a maior influência possível, uma forma de ambiente controlado onde seja viável manter na maior parte do tempo a ilusão de domínio e de controle.
Posto que mesmo as pessoas acabam por se constituir em objetos que fazem parte da construção de mundo individual, há a necessidade de estender o domínio até elas.
À primeira vista, aqui ocorre o choque entre duas noções que, pelo menos na aparência, são completamente distintas: afeição e poder. Entendemos a afeição como algo positivo, um sentimento desinteressado, gratificante e, por que não dizer, necessário. Parece algo indissociável da nossa natureza a necessidade de contato, de aproximação, de construção de laços e celebração de vínculos. Temos a impressão de não nos bastarmos e de precisarmos destas aproximações que se dão em diversos graus de afinidades e níveis de intimidade. O outro é parte daquilo que somos, da nossa constituição, servindo, inclusive, de espelho que projeta um reflexo que permite nos conhecermos melhor. Mesmo o mais individualista dos humanos necessita do outro para projetar sobre ele o seu individualismo. Daí podemos concluir que temos o impulso natural de estender a nossa dominância para aqueles com quem convivemos, dominância esta que se buscará impor mais ou menos conforme o grau de proximidade.
A palavra afeição tem como sinônimo afeto (affectus, em latim). Curiosamente, na mesma medida que afeto representa um sentimento positivo, a palavra evoca também um significado de sujeição. Poderíamos dizer que este sentimento sujeita a nossa vontade, da mesma forma que os desejos, manifestando-se como tal, ou seja, como impulso interno, despido de ordem e sentido. Da mesma forma que os desejos, então, a própria afeição, pela impossibilidade de ser controlada, acaba por gerar a intenção de ter poder sobre o objeto que a motiva e esta é a relação comum que estabelecemos entre afeição e poder.
Inevitável é admitir que o objeto que se pretende dominar – o outro – também vivencia experiência similar, isto é, vive o conflito pessoal de sua relação distorcida e fragmentada com o poder, afetando a forma como se vê, como age e como se relaciona consigo mesmo e com o mundo.
O que se nota é que as relações afetivas, seja de forma implícita, seja de forma explícita, muitas vezes acabam por se tornar o palco de disputas por poder e, conseqüentemente, por dominação.
Não creio que possa apontar, para esta questão, um caminho melhor que qualquer outra pessoa. Talvez o aspecto mais importante aqui seja notar que construímos paulatinamente situações que nos fazem sofrer e que tornam as nossas vidas mais pesadas, mais difíceis de serem vividas. Não seriam todos os grandes males do mundo fruto da eterna disputa por poder? A própria experiência individual já não registra quão desgastante é este estado contínuo e latente de litígio que mantemos em relação a nós mesmos, a nossos semelhantes e ao mundo? Penso que um bom exemplo a ser seguido é o daqueles que, abandonando a intenção de exercer domínio sobre a realidade que os circunda, acharam por bem buscar aumentar o poder sobre si mesmos e assim libertaram-se das amarras de viver em um mundo pequeno e claustrofóbico que, embora pareça seguro, se constitui na prisão de cada um.