25 de nov. de 2005

O ótimo como ismo

É possível que eu tenha uma visão estreita, pois penso que toda a forma de masoquismo se constitui em uma patologia. A dor física é um dispositivo que tem como finalidade alertar em relação a alterações que possam ser nocivas ao organismo. Embora muitos de nós julguem que a vida seria bem melhor sem estes alertas, devemos saber que, nesta condição, não duraríamos muito, sucumbiríamos aos menores dos males. A dor faz parte do intrincado mecanismo que garante a manutenção da vida, sendo algo natural e, por incrível que pareça, benéfico. Isso não torna menos bizarro o ato de comprazer-se em sentir dor, pois, se a dor informa quando o organismo requer uma atenção especial, a sua ausência deveria constituir-se em sinal de harmonia e equilíbrio. Sendo assim, buscar a dor é um ato mórbido, um atentado à vida, entendida como princípio.
Como diria Arnaldo Antunes, "o corpo ainda é pouco", se múltiplas são as possibilidades de dores físicas, tantas outras são as dores psíquicas e comprazer-se com esta outra forma de mal-estar não deixa de ser tão mórbido quanto a anterior. Temo que a dor psíquica seja cultivada de forma mais extensa e contínua, por um número substancialmente superior aos que simplesmente se atém ao puro e simples masoquismo físico.
Ao falar em masoquismo, devemos lembrar que este termo está ligado a um tipo de comportamento específico, onde concebe-se a dor como veículo de prazer. Mantendo esta relação, parece natural ao masoquista buscar a dor que lhe causa prazer, ou seja, ele movimenta-se voluntariamente em direção àquilo que a maioria das pessoas busca afastar-se. Diríamos, então, que aquele que cultiva voluntariamente a dor, seja física ou psíquica, é masoquista e isto é um erro. Acredito que muitas vezes as pessoas deslocam-se voluntariamente em direção a estados de dor e aflição, embora isto nem sempre esteja atrelado diretamente a uma satisfação. Em outras palavras, é comum às pessoas fazerem-se sofrer, mas isto não quer dizer que elas o façam por prazer e, pelo menos à primeira vista, esta é uma morbidez muito maior que o próprio masoquismo.
De modo geral, toda a incomodação física é facilmente percebida, ainda que nem sempre seja adequadamente compreendida. A incomodação psíquica, por sua vez, possivelmente pelo próprio caráter de intangibilidade que lhe é peculiar, percorre a nossa percepção, com certa freqüência, de forma mais ou menos implícita. Em virtude disso, parece ser comum que esta última possa ser provocada por movimentos voluntários, ainda que não sejam conscientes ou intencionais.
Alguém seria capaz de negar que há pessoas que tudo o que constroem para si e para os outros são quadros nefastos, onde cada pequeno aspecto da realidade representa algo que se configura como um mal? O senso comum designa estas pessoas como pessimistas. Diria-se que pessimismo seria a tendência de olhar as coisas pelo lado pior, poderíamos acrescentar que ele envolve também a atividade criativa de elaborar, inclusive, lados piores que, aparentemente, não existem. Nesta condição, o ser humano possui um desgosto natural pela vida e, se antes foi dito que a apreciação pela dor tinha uma conotação de atentar contra a vida, é inevitável que aquele que cultiva esta inclinação predispõe-se a viver de forma miserável e tortuosa, antagonizando-se com a sua própria vitalidade. Não seria esta uma maneira de auto impor-se um sofrimento psíquico sem qualquer finalidade de prazer? Não nos enganemos, porém, todos nós, em maior ou menor grau, cultivamos alguma forma de sofrimento interno que não tem qualquer outra utilidade senão nos impedir de viver de forma mais plena e saudável.
Tomado o exemplo do pessimismo, pensemos que o ismo acoplado à palavra lhe confere uma tonalidade meio pegajosa da qual é difícil livrar-se. Ao pensarmos seriamente no seu oposto, o otimismo, corremos o risco de ter uma percepção similar. Se adotar o pessimismo é condenar-se a viver em meio a uma obscuridade, nem que para isso tenha que se apagar as luzes, adotar o otimismo significa ver as luzes acesas mesmo quando estamos em meio à escuridão. Se adotar o pessimismo é negar-se o direito de viver, o puro e simples otimismo exige uma cegueira perigosa, senão suicida.
Coexistimos em uma realidade repleta de ameaças, quase todas criadas pelo próprio ser humano. Em virtude da gravidade dos problemas de nosso tempo, passamos a acreditar que, para garantir um mínimo de sanidade e de possibilidade de alegria, necessitamos ignorá-los sistematicamente e chamamos isto de otimismo. Àqueles que resolvem nos lembrar quão grave é a nossa situação, atribuímos a alcunha de pessimistas. Como uma criança, pensamos que, ao colocar as mãos sobre os nossos olhos, nos escondemos. Pergunto-me se, do alto de toda a pretensão de conhecimento e domínio que o homem erigiu como um monumento a si próprio, podemos confiar que os nossos males resolvam-se por si próprios, simplesmente porque não nos recusamos a ser pessimistas. Considero detestável a atitude de afirmar sempre que tudo está perdido e sem solução, da mesma forma que considero patético apoiar-se na solitária convicção de que "tudo vai dar certo", não importando como. Somos obrigados a reconhecer, quer queiramos ou não, que a poluição, a miséria, a violência, o aquecimento global, a exploração desenfreada dos recursos naturais e a desigualdade social não são fenômenos naturais e espontâneos, são fruto das escolhas humanas e somente novas escolhas podem produzir novos caminhos. É natural que evitemos pensar nestas questões, porque sabemos que a pressão que elas exercem sobre o nosso espírito é tão intensa que temos medo de quebrar. Aqui sofremos de outro vício criado em nossa cultura: o individualismo. Realmente, tudo isto é grande demais para uma pessoa, entretanto esquecemos que estamos falando de coisas que dizem respeito a todos nós e somente olhando as coisas sob esta perspectiva é que conseguimos perceber que, talvez, o maior de nossos problemas sejam as distâncias que nos separam uns dos outros e que pouco fazemos para superar. Enquanto isso, continuaremos achando que tudo está perdido ou que tudo dará certo, somente achando...