23 de out. de 2005

Algumas considerações acerca da alegria

“Os filósofos que especularam sobre a significação da vida e sobre o destino do homem não notaram suficientemente que a natureza deu-se ao trabalho de nos informar por si própria acerca disso. Ela nos adverte, por um signo preciso, que o nosso destino foi atingido. Este signo é a alegria.” – Henri-Louis Bergson

Qual o melhor termo a ser usado quando tratamos do nosso momento histórico, da nossa época? Normalmente, na pretensão de sermos rigorosamente corretos, diríamos contemporaneidade. Termo formal, simples e de sentido inequívoco.
Se tomarmos esta “contemporaneidade” e tentarmos identificar alguns sinais que lhe são definidores, notaremos que há pensadores que se arriscam, ainda que de forma controversa, a qualificar este tempo como pós-moderno (vide Lyotard e Vattimo) ou pós-industrial (não é este o termo empregado por Domenico Di Masi?). Há a possibilidade de ouvirmos dizer, também, que é o fim dos tempos, o fim do mundo ou, simplesmente, o fim da picada. Para mim é a época da tristeza.
Somos frutos do nosso tempo e isto, com grande freqüência, afeta a nossa capacidade de ter uma perspectiva histórica em relação ao que somos e à sociedade como um todo. Por isso, quando digo que vivemos um tempo de tristeza, trago comigo a parcialidade da época que me condiciona. É bem possível que outras épocas fossem muito mais tristes e miseráveis que a nossa, porém creio que hoje estamos despertando para a nossa tristeza e isto a torna mais presente, mais palpável.
O trato das emoções é complexo e não somente pelas emoções em si, mas também pela forma como conduzimos o nosso esforço de compreensão. Historicamente, a tradição do pensamento ocidental, século após século, consolidou a sua devoção à razão. Primeiro a razão era um movimento de organização, depois uma predisposição, depois uma faculdade humana e, por último, a essência do ser humano. Não é à toa que filósofos como Nietzsche e Kierkegaard se entregaram à tarefa de desmistificar este autoritarismo racional.
Ao tratar da emoção, temos que cuidar com o fato de que, naturalmente, somos direcionados a interpretá-la de forma dicotômica no ser humano, dentro de uma relação de antagonismo com a razão. Não creio que isto corresponda a nossa realidade. Não creio que haja esta linha clara e precisa que estabeleça domínios opostos e inconciliáveis. Pensemos que, na medida em que a razão alcançou o status de ser reconhecida como o próprio homem, em sua porção mais nobre e elevada, e considerou-se que as emoções nos afetavam de tal forma que nos desencaminhavam, chegou-se com facilidade às paixões e ao seu sentido literal (de passione, em latim, sofrer). Paixão é o que se sofre, o que nos afeta, é algo que não temos controle, que vem de fora para dentro, até o extremo de tê-las como expressão da porção animal do homem.
Esta herança distorce a forma como interpretamos as emoções, aliás, a forma como entendemos a sua interpretação, pois acreditamos que o conhecer, que não é outra coisa senão interpretar a realidade, é fruto de uma atividade racional. Pensamos, então, que as emoções não são interpretadas, apenas acontecem. Dão-se de uma maneira espontânea e interferem negativamente na nossa capacidade de julgamento. Há um engano contundente nesta visão, pois as emoções também são compatibilizadas com o contínuo processo de interpretação que é a vida. Sentimos e a este sentir atribuímos significados particulares e gerais.
Espinosa percebeu, diante da relação intrínseca que há entre o ser humano e o mundo, que era inevitável o fato de que afetamos e somos afetados continuamente. Reprova todos aqueles que colocam as paixões humanas como típicas de uma inclinação inferior. Atesta a indissociabilidade das emoções em relação ao que somos. Por outro lado, reconhece que há paixões (por ele melhor denominadas de afecções) positivas e negativas, reduzindo-as a apenas dois tipos: alegria e tristeza. O amor, o júbilo e a esperança são afecções “alegres”. O ódio, o ressentimento, a frustração e o desespero são afecções “tristes”.
Diz ainda que a essência do ser humano é o esforço de perseverar na existência, portanto gera alegria o que aumenta o nosso poder de perseverar na existência (conatus), gerando tristeza o que diminui este poder. Como Espinosa reconhece que há a interação do homem com o todo, as afecções resultam de “encontros” e a alegria provém de “encontros alegres”. Deste modo, a nossa liberdade se volta para reconhecer esta realidade e buscar incentivar a alegria, através de “encontros” que gerem afecções positivas e aumentem o nosso conatus. O problema aqui é que, na maior parte das vezes, os homens são guiados por percepções confusas e mutiladas da realidade, procurando aumentar o seu conatus em coisas que lhe são externas. É neste sentido que acabamos por buscar a alegria nos tradicionais bens que as sociedades sempre reconheceram como maiores: a riqueza, as honrarias e a concupiscência.
Bergson também dará um papel importante à alegria, como signo engendrado pela natureza para dizer que o homem alcançou o seu destino. Não se pode dizer que ele afirme claramente uma disposição teleológica da alegria, mas sim que esta é a conseqüência e índice que nos mostra que estamos fazendo o que corresponde à natureza intrínseca da vida. Há uma certa proximidade com o conceito aristotélico de felicidade (eudaimonia), na medida em que Aristóteles acreditava que o caminho da felicidade passava pelo desenvolvimento das faculdades humanas, num sentido muito presente em sua filosofia de telos (finalidade, causa final), porém o estagirita deixa pistas de que acredita que a faculdade mais importante do homem é a razão e aí se limita. Sempre entendi este telos como uma necessidade de adequação ao que somos. Imaginava que os pássaros, dotados de asas e da capacidade para voar e presos ao chão, se tivessem consciência suficiente de si mesmos, seriam infelizes.
Voltando a pensar na tristeza, que parece delinear a têmpera de nossos dias, podemos notá-la pelas suas variadas manifestações conhecidas, a saber, a depressão, a angústia, a ansiedade, o medo, a insegurança, a frustração, o desencanto e a desesperança. Creio ser de senso comum que ninguém (ou praticamente ninguém) se sente confortável triste e, ao ser tragado por este sentimento, é natural que busquemos, algumas vezes mais profundamente e em outras menos, suplantá-lo. A cura para esta tristeza epidêmica, no meu entender, quase sempre se volta para regiões distantes da fonte onde o mal é gerado. Soma-se a isso que normalmente confunde-se alegria com prazer e, não há como negar, a sociedade atual atingiu certos níveis de excesso em termos valor concedido ao prazer e às formas de satisfação hedonista. Esta distinção já destacada por Bergson, onde a alegria representa o triunfo da vida e o prazer um mero artifício da natureza para garantir a sua conservação, de forma geral, é muito pouco percebida e discernida.
A satisfação gerada pelo prazer passa a ser identificada como o estado almejado em oposição aos estados de tristeza. É notório, porém, que a satisfação oriunda do prazer possui um caráter superficial e extremamente efêmero. Grande parte da tradição filosófica trabalhou com a escravidão concupiscente derivada de certos prazeres como a gula, a embriaguez e a luxúria. Seria esta escravidão fruto da ânsia por afastar a tristeza de nossas almas? Seja assim ou não, é certo que os prazeres possuem esta propriedade de nos “distrair” de certas questões da vida.
A vida, em si mesma, padece de uma urgência, pois, enquanto pensamos e questionamos, ela está sendo. Por isso nos perguntamos de onde nasce a tristeza que temos e o que fazer para que a alegria se instale em nosso espírito?
Se formos tomar o caminho que considera como válida uma propensão teleológica inerente ao ser humano e condicionante de sua natureza, diríamos que a nossa tristeza advém do fato de que há uma falta de sintonia entre a forma como vivemos e a forma como deveríamos viver. Cumpre, então, definir que aspectos são mais comuns às vivências individuais e coletivas, os traços que marcam, que definem, as sociedades contemporâneas.
Nos deslocando neste sentido, poderíamos tratar da questão dos valores, pois são estes que atuam como referenciais, balizando a construção das escalas que determinam o grau de importância dos diversos objetos que ocupam os nossos pensamentos e ações. São valores comuns, ao longo da história da humanidade, o individualismo, a prosperidade, o reconhecimento público e o máximo de potência pessoal na satisfação dos desejos (normalmente vinculados a prazeres). Poderíamos dizer, também, que a afeição e o contato humano buscariam uma posição aqui, mas me parece que eles se inserem mais como uma necessidade vital do que como algo em que realmente se acredita. Com isso, podemos perceber que pode haver uma séria distinção entre o que admitimos acreditar e o que praticamos de fato. Considero como valores válidos os que realmente condicionam as ações e não aqueles que condicionam somente as aspirações.
Se formos notar esta série de valores preponderantes, notaremos que todos se relacionam com poder. O individualismo se mostra como a propensão de consolidar o poder do indivíduo enquanto tal, diante dos outros e do mundo. A prosperidade é o poder diante, primeiramente, das necessidades de sobrevivência e, depois, de consumar certos desejos. O reconhecimento público representa o poder de ascensão sobre os outros e a afirmação do poder individual. A potência pessoal nada mais é que um desdobramento dos outros.
Há algo que margeia todas estas esferas em que projetamos nossos anseios de poder, a saber, o fato de que não cogitamos que possamos ter algum domínio sobre os nossos impulsos, os nossos desejos propriamente ditos. Então buscamos estender o nosso poder à realidade que nos cerca.
Estando em uma condição em que nos percebemos, ainda que implicitamente, como indivíduos que não são de forma absoluta, senhores de si mesmo e muito menos senhores de uma realidade em que, como diz Heidegger, fomos atirados, que poderia nos restar senão uma profunda intuição de impotência, que tenta buscar a sua cura na posse de formas periféricas de poder que, não suprindo esta sensação de incapacidade, pelo menos a diluem em uma série de ilusões?
Se retornarmos a Espinosa, veremos que, na busca dos valores vigentes, considerados fundamentais, só podemos encontrar a diminuição do nosso poder de persistir na existência, só teremos encontros motivadores de afecções tristes e, conseqüentemente, afastaremos de nós a alegria.
As correntes que aprisionam o nosso espírito não são grossas e tangíveis, nem por isso deixam de ser fortes e resistentes. Estamos atados aos conceitos que herdamos e que reconstruímos em nós mesmos, conceitos estes que determinam a forma como entendemos e conduzimos a nossa existência.
A alegria se mostra, segundo Bergson, como fruto do esforço empreendido para materializar o pensamento, sendo o influxo deste que traz vida e movimento para a condição estática da matéria. É na criação contínua, no esforço de introjetar vida ao que é naturalmente inerte, que encontramos alegria. Se o esforço de criação traz a alegria, a maior criação é a de si por si, ou seja, aquela que envolve o “engrandecimento da personalidade”. Em relação a isto, aqueles homens de moral mais elevada, que situam a sua existência em um nível de contínua criação, onde “o movimento vital não encontra obstáculos”, representam um ponto mais alto de evolução: “Contudo, criador por excelência é aquele cuja ação, ela própria intensa, é capaz de intensificar também a ação dos outros homens, e generosamente iluminar núcleos de generosidade.” Com isso, ele nos convida a observar a vida daqueles que se destacam pela sua grandeza moral. “Para penetrar nos mistérios das profundezas, é preciso por vezes visar aos cimos”.
Não seria esta uma maneira distinta de passar uma mesma mensagem que, vinda de diversos lugares do mundo, de diversas épocas, de diversos homens, fala em amor, compreensão, tolerância, solidariedade, desapego e humildade? Não seria a contínua afirmação de que as coisas que, normalmente, parecem possuir mais valor e a que dedicamos todo o nosso esforço são aquelas que nos conduzem à tristeza? Não seria a afirmação da possibilidade de vivermos uma vida “alegre”, algo muito superior a nossa tradicional aspiração por felicidade? Não sei a resposta, mas que vale a pena considerar isso, certamente vale!