7 de out. de 2005

Penélope

A mesma dedicação empregada durante o dia em trançar - com uma elegância, precisão e beleza de acender a inveja da própria Aracne – a tapeçaria que significava abandonar o seu Odisseu e a obrigação de escolher como marido um dos fanfarrões oportunistas que a assediavam, como abutres à carniça; Penélope empregava à noite, desfazendo o trabalho diurno, na esperança de ganhar tempo suficiente para o retorno de seu amado, ausência que já se estendera por tantos anos.
Pragmás, amiga de longa data, tanto quanto os energúmenos que se embriagavam no salão embaixo, também não concedia descanso à pobre Penélope, mulher que o próprio tempo se recusara a roubar a beleza, em respeito a sua firmeza de caráter e virtude:
- Mulher, o que tem em teus miolos? Por que te dedicas incansavelmente a estas lides de Sísifo, se bem poderias viver de forma mais tranqüila, aproveitando melhor a vida, que bem o sabes é curta e recheada de infortúnios? Tu, eleita dentre as eleitas de Ítaca, por que - não querendo servir a outro homem que o teu Odisseu, que nem sabes se está vivo ou morto, ou se deliciando nos braços de alguma princesa exótica em portos que sequer imaginas existir – insistes em servir somente a tua teimosia e veleidade? Por que viver como uma escrava inútil, que sobrevive graças à bondade de seus senhores, e não como a rainha que és de fato?
- Cara amiga, não compreendo porque te incomodas tanto esta situação? Na verdade, o mundo que os homens construíram, tantas vezes nos cobra, a nós mulheres, pesados tributos, mas o que nos restaria se permitíssemos que eles nos tomassem, depois do corpo, da liberdade e da vontade, até mesmo o nosso espírito?
- Espírito!? Que fazes com o teu espírito!? Matas a tua fome? Sacias a tua sede? Satisfaz os teus desejos? Te abrigas das chuvas e dos animais? És reconhecida e invejada pelos que te rodeiam, graças ao teu espírito?
- Tens razão... Todavia, é ele que me permite ser o que sou. Comemos para quê? Comemos para viver. Muitas vezes haveremos de comer por prazer e não creio que haja um mal tão grande nisso, se esse hábito não for uma escravidão que nos transforme em fantasmas estúpidos e bestiais, glutões concupiscentes que tentam preencher o vazio que trazem em seus corações com as iguarias que consomem pela boca. Não é diferente com a bebida ou outros prazeres da vida que, tanto quanto podem afirmar que estamos vivos, podem também nos tornar meros simulacros de homens e mulheres. Para quê nos empenhamos em comer, beber, nos abrigar ou sentir prazer, senão para nos mantermos vivos? Como poderia eu, então, permanecer viva se queres que, antes de tudo, mate o meu espírito? De que valeria sustentar um corpo ou uma vontade de algo que já se perdeu por não possuir coragem suficiente para ser o que é?
- Não sei aonde pretendes chegar com tais divagações que pouco combinam com uma mulher e que em nada podem te ajudar. Esquece tais delírios que devem ser fruto da combinação perigosa de uma mulher com fogo e da falta de um homem em sua cama. És Penélope, rainha de Ítaca, não há como ser de outra forma até que sejas chamada ao reino de Hades. Por que guardas tanta fidelidade ao teu esposo, que sequer deves lembrar a face?
- Não sei se te entendo bem...
- Eu é que não te entendo!
- Falas da fidelidade ao meu esposo e não nego que assim o seja, mas há uma fidelidade maior que esta e que me é mais cara.
- Que fidelidade seria esta?!
- Fidelidade ao que sou! Sou aquela de vontade firme e crença inabalável. Sou aquela que, determinada a viver só antes que sem o seu esposo, aceita ser uma mendiga, mas não uma rainha corrompida. É isto que sou, é assim que me reconheço. Fazer diferente do que faço seria destruir a Penélope e me transformar em uma outra coisa menos digna de mim mesma. Não me considero melhor nem pior que qualquer outro ser vivente. Na condição de rainha não cultivo qualquer vaidade, orgulho ou egoísmo, mesmo assim, os deuses que me perdoem, me agrada ser da forma que sou e não estou preparada para ser outra coisa. Não creio que, se seguisse este caminho, aparentemente, fácil que me ofereces – reconheço que pensando no meu bem – eu tornaria os meus dias melhores. Antes disso, querendo viver de uma forma cômoda, expulsaria a vida que há em mim e que faz com que me considere bela e viva.
Esta foi a última gota d’água, Pragmás saiu resmungando:
- Mulher maluca esta...