28 de out. de 2005

Sobre algumas perplexidades

Penso que ninguém aceita com facilidade o fato de que há momentos em que o discernimento simplesmente naufraga.
Parece difícil explicar o porquê de, num instante estarmos nos sentindo seguros daquilo que sabemos, do que compreendemos e do que podemos fazer, e no outro sermos tomados por todo o tipo de dúvidas. Se voltarmos a nossa atenção para a constituição frágil da nossa habilidade de conhecer, inclusive no que concerne ao entendimento que temos de nós mesmos e, além disso, percebermos que a vida impõe a cada momento um novo cenário, nada pareceria mais natural do que o fato de que não temos todas as respostas, sendo que aquelas que possuímos são escassas, parciais e provisórias, senão equivocadas.
Quando pensamos em conhecimentos, normalmente os concebemos dentro de sentidos práticos e objetivos. Se incomoda não ter controle sobre os fenômenos que nos rodeiam e nos afetam - ao mesmo tempo em que buscamos, desde tempos ancestrais, dominar suficientemente o nosso ambiente para não nos sentirmos ameaçados - é preciso reconhecer que o nível de desconhecimento e de incompreensão que nutrimos em relação a nós mesmos, por si só, já é móvel de uma intranquilidade, de uma angústia, de um desconforto.
Um olhar superficial já revela que temos a tendência comum de objetualizar os sentimentos, ou seja, a cada sentimento atrelar um objeto. Desta maneira, ao nos sentirmos enfurecidos, buscamos o objeto deste enfurecimento; ao situar este objeto, seja de forma adequada ou não, ele passa a simbolizar o próprio sentimento e a sua presença evoca sempre a respectiva imagem construída. O mesmo se dá quando nos sentimos alegres em presença de alguma pessoa. A partir de um dado momento, objetualizamos a figura desta pessoa, transformando-a no móvel da alegria, sendo que, nos momentos de tristeza, o que buscamos é o objeto que identificamos como motivador do sentimento desejado.
Ninguém nega que, neste processo, se dão sentimentos negativos e destrutivos, assim como, sentimentos positivos e construtivos. O que se sobressai, porém, é a distorção que alimentamos e que fatalmente nos conduzirá a rompimentos sucessivos com o discernimento que temos destas relações entre sentimentos e objetos. Não é possível que a fruição de um dado prazer propicie sempre e continuamente a mesma cota de satisfação. De igual maneira, não é possível que a presença de uma pessoa amada produza sempre uma mesma intensidade de alegria. Assim fica fácil perceber que transferimos a instabilidade das nossas relações internas para as nossas relações com o mundo.
Sentimentos que normalmente vinculamos ao bem-estar, como o prazer e a alegria, se referem mais a perspectivas existenciais próprias do ser humano (de forma geral) e do indivíduo (de forma particular), do que a uma relação verdadeira e legítima entre sujeitos e objetos. Em outras palavras, a legitimidade da alegria sentida em uma dada experiência não se deve à legitimidade do laço que une aquele que está fruindo e aquilo que é fruído. A legitimidade se encontra no momento em que se avizinham a experiência vivenciada e uma forma de autenticidade intrínseca a nossa condição, fazendo com que não hajam objetos propriamente ditos ou rotas de ligação entre estes e a nossa fruição "alegre". O que há é um trânsito, uma aproximação com aquilo que somos, onde nos identificamos e nos sentimos mais plenos, mais fortes, mais seguros. Como, por força do hábito, não reconhecemos isto, acabamos por presenciar a diluição nos nossos sentimentos positivos, conforme se diluem as imagens que possuímos de nossos objetos de satisfação, sobrando por fim um vazio, uma falta, até que identifiquemos um novo objeto, uma nova escolha.
Não é difícil perceber, então, que o nosso discernimento naufraga por tentar se firmar em bases demasiadamente escorregadias, mesmo que faça isto com uma pretensão de segurança e solidez. A vida é, essencialmente, uma corrente fluida. Acredito ser possível conduzí-la por determinados caminhos, mas lastreá-la, fixá-la, amarrá-la a algo com a intenção de retê-la, segurá-la e dominá-la é um exercício que só conduzirá a uma anulação, porque a sua natureza íntima é justamente o oposto de tais intenções.
Uma reflexão não muito profunda já revela que o nosso incômodo é indicativo de que exaurimos algo em nossas concepções de realidade e de vida. A consonância com esta percepção nos obriga, então, a aceitar que o nosso discernimento naufraga em alguns momentos para que possa se revitalizar e continuar possibilitando o movimento contínuo, indicativo real de que ainda estamos vivos e de que não somos somente autômatos que arrastam os seus andrajos por uma superfície áspera, sem nunca encontrar um lar.