23 de set. de 2005

Artigo - Daquilo que somos

Não creio que possamos almejar muita coisa na vida. Todo e qualquer sonho grandioso para o homem, quando colocado diante da imensidão do todo onde ele está inserido, parece pequeno e sem graça. Muitas vezes nos sobra somente o tamanho da nossa finitude. Curiosamente, é quando abandonamos os delírios de grandeza; que parecem mais a expressão da revolta que nutrimos em relação a uma intuição de impotência que não nos abandona do que a certeza de que somos capazes de feitos significativos; é que abrimos o caminho para nos tornarmos grandes.
A arrogância humana só é possível se ignorarmos, deliberadamente, a nossa pequenez. Diminuir o tamanho do universo, aumentar a importância de nossas idiossincrasias, superestimar o nosso conhecimento, entre outras coisas, são alguns dos expedientes que utilizamos para elevar a nossa estatura e que, ao mesmo tempo, turvam a nossa visão, facilitando a tarefa a qual nos dedicamos com tanto empenho e esmero: nos tornarmos infelizes. Nos sentimos, tantas vezes, miseráveis, porque temos uma obsessão por não nos sentirmos miseráveis. Nos falta lucidez, nos falta discernimento.
Nesta ânsia de não nos sentirmos pequenos, geramos, cada qual a sua maneira, as ilusões que nos fornecerão o sentido, o propósito, sem os quais não somos nada. São estas ilusões que servirão de esteio para a interpretação dos nossos desejos, das nossas aspirações e, acima de tudo, de nosso vazio. Sim, não há como negar, carregamos conosco um vazio. Não nos assustemos com os monstros, os terrores. A nossa maior fobia é o vazio, tanto que sequer falamos dele, sequer pensamos nele, sequer o reconhecemos, com medo de, ao sussurrar seu nome, ao evocar a sua presença, ele apareça e nos devore de tal forma que venhamos a desaparecer. Isto, entretanto, jamais evitou que nos assombrasse os sonhos e a realidade, que nos espreitasse por entre as sombras que se produzem nas nossas dúvidas. O esconjuro de tal temor parece ser um só, a saber, o preenchimento e, aqui, o que nos falta em qualidade, sobra em quantidade.
Não somos algo estático. Heidegger explicita com lucidez que o ser humano (Dasein) é um ente que se diferencia dos outros entes, pois ele sendo, "está em jogo o seu próprio ser". Não somos algo que possa ser esclarecido por um é. Podemos dizer que a cadeira é azul, que a pedra é dura, que a mesa é branca. O homem, no ato de ser o que entendemos que ele é, está diante da possibilidade de ser de outra forma. Não podemos nos definir como objetos, somos um trânsito. É possível que, aceitando esta condição em nós mesmos, percebamos que a própria realidade partilha deste contínuo. Espinosa define que a essência do ser humano é "o esforço de perseverar na existência". Esta afirmação não determina um é, determina um modo de ser. Assim, percebemos o esforço dos filósofos na tentativa de capturar a intuição que possuem do movimento, da continuidade da existência humana.
Sob esta perspectiva, parece que, mais autênticos que nossas aspirações, nossos projetos, nossas crenças, nossos objetivos, são os movimentos de nosso espírito. Os primeiros nada mais são que as interpretações distorcidas (Espinosa dirá "percepções mutiladas e confusas") dos segundos.
Projetamos o que pretendemos "ser" como se pudéssemos traçar linhas de chegada. Ignoramos a natureza própria e dinâmica de nossa condição existencial. Transformamos o movimento em imagens congeladas, estáticas (Bergson percebeu isto de forma clara e inequívoca). Transformamos o fluxo da vida em fotografias de fatos. Não vivemos, estabelecemos marcos.
Falamos do que queremos como se soubéssemos o que fosse o querer. Referindo mais uma vez a Espinosa, ele diz que não desejamos as coisas porque elas sejam boas, acreditamos que elas sejam boas porque as desejamos. No ato de interpretar o movimento interno e lhe dar significado, transformando-o em desejo, também promovemos a sua paralisação. Quero um carro novo. Quero uma casa nova. Quero um computador. Quero comprar roupas. Quero um amor. Quero ser médico. Quero ser engenheiro. Quero ser advogado. Pontos aonde queremos chegar e, chegando neles, permanece o vazio, permanece a incongruência.
Não podemos ser algo desejando, ansiando, projetando, planejando. Somos somente de uma forma: sendo. Somos quando damos vazão ao movimento próprio da nossa natureza. O que somos não é um destino, é algo que vivenciamos, é a existência propriamente dita. Para tal, é preciso assumir, simplesmente, ser o que é. Um poeta não se diz poeta, não assina como poeta, ele faz poesia, ele vê o mundo com olhos de poeta. Um médico não é médico por dizer que é ou por usar jaleco, ele simplesmente pratica a medicina. Ele se assume, num dado momento, como médico, podendo, de uma hora para outra, ser outra coisa. Não somos pelas etiquetas, não somos pelo que queremos, somos pelo que fazemos, somos pela forma como vivemos.
Se há algo que deveríamos nos ocupar em fazer é retirar as amarras, remover os entulhos que obstruem o caminho daquilo que somos, para que, simplesmente, venhamos a ser. Só temos uma obrigação na vida, nos assumirmos, mas como isto é difícil!