18 de set. de 2005

Artigo - Profissão

De tempos em tempos eu me estranho com alguma palavra. A bola da vez é profissão.
Não sei se isto ocorre de forma espontânea e casual ou se é porque esta palavra vive dançando de forma bem desengonçada na boca de todo o tipo de pessoa, em todo o tipo de circunstância, a toda hora.
No sentido mais simples possível, profissão é ato ou efeito de professar. Por sua vez, professar significa reconhecer, confessar publicamente, ensinar, abraçar, seguir e, também, exercer. Na sua origem etimológica, "declarar diante de alguém".
Entendo que o sentido de profissão aparece na integração de duas perspectivas. Na primeira, a forma imediata remete ao público, isto é, a uma manifestação de cunho ostensivo onde o indivíduo se revela publicamente como alguém que segue um determinado caminho, possui uma determinada convicção, pratica algo, adota uma crença. Todavia, para que haja esta manifestação, ela deve ocorrer, antes, na interioridade e este aspecto representa o segundo âmbito conceitual do termo. Para que eu possa professar uma crença, necessito internalizá-la antes. A convicção, por menor que seja o radicalismo de sua fundamentação (entendam radicalismo no sentido próprio da palavra, daquilo que se refere às raízes) , é algo que se projeta a partir da interioridade humana. Assim sendo, o professar é algo que nasce de uma posição própria, individual, e se propaga para o coletivo como um ato público de afirmação.
Em relação a isso, muitos dirão que é comum as pessoas trazerem consigo convicções que não são mais do que subproduto de convicções alheias.
Respondo a este argumento da seguinte maneira: pensemos em um objeto que os nossos olhos já viram, algo simples como uma bola. Uma bola vermelha, com diâmetro não superior a 30 centímetros. Imaginemos agora que estamos próximos a alguém e lhe descrevemos o que vimos. O objeto jamais estará nos nossos olhos, ou na nossa imagem mental ou na linguagem que usamos para descrevê-lo. E, ainda assim, estará lá. Este processo não pode ser executado sem que, de uma forma mais ou menos superficial, o objeto em questão seja internalizado. Não é possível exprimir a bola sem fazer com que ela passe pela nossa consciência. Ao descrevê-la, não a estaremos transmitindo diretamente, senão a consequência de a termos absorvido e compreendido de uma dada maneira, assim como, a nossa maior ou menor capacidade lingüística para fazer a descrição. Se isto acontece com um objeto aparentemente simples e tangível como a bola, o que se dizer das idéias. Não é possível que elas entrem e saiam da nossa mente sem nos afetarem ou serem afetadas por nós.
Este processo de internalização é interessante, na medida em que podemos repensar os sentidos usuais que são dados às palavras profissão e profissional, diante do exposto acima. Entendemos usualmente profissão como uma atividade laboral específica, que envolve o domínio de certas técnicas e respectivo reconhecimento social, sendo profissional aquele que reúne as condições para exercer tal atividade e é reconhecido por isso.
Comparando a noção anterior de profissão com esta última, notaremos que elas praticamente se equiparam no aspecto público, mas se distanciam quando pensamos na perspectiva da convicção individual. A técnica, para ser aprendida, não exige como pré-requisito a aceitação daquilo que ela traz consigo como desdobramentos. Um soldado, em treinamento, pode aprender a usar seu fuzil com razoável destreza, isto, porém, não é garantia de que ele tenha convicção da possibilidade de usar este conhecimento para tirar a vida de alguém.
Chegamos agora, ao final, onde reconhecemos que o termo profissão não pode ser aplicado de forma esclarecedora a todo o tipo de prática considerada dentro do domínio de uma dada técnica reconhecida socialmente.
Tomando como exemplo um político, poderíamos nos perguntar que idéia fazemos do que concerne, essencialmente, à atividade do político? Falo essencialmente, porque acredito que somente nesta essencialidade podemos escapulir do caráter superficial da técnica e encontrarmos um conteúdo passível de convicção. Não importa que a prática política que nos parece mais comum se conduza por caminhos que consideramos reprováveis. De modo geral, acreditamos que o político é alguém que deve (ou deveria) trabalhar pelo bem comum e esta é a essencialidade desta atividade, isto é, o bem comum. Se um político, no exercício da atividade política, tem como finalidade a vantagem pessoal e não o bem comum, não podemos dizer que ele professa, ou traz consigo a convicção de ser político, mas sim que ele professa o oportunismo, sendo esta a sua profissão. De forma similar, o médico teria, na essencialidade de sua atividade, o encargo de se ocupar do bem-estar da pessoa humana. Se este se enreda em um caminho de ganância, o que professa é justamente a ganância e não o bem-estar de seus pacientes. Que nome poderíamos dar a esta prática, até então chamada de profissional, que traz desvinculadas na sua operosidade a técnica e aquilo que consideramos sua finalidade essencial, justificadora de sua existência? Eu chamaria de ofício, mas creio que outros termos são possíveis.
Colocada a questão desta forma, nos caberia indagar o que, então, professamos nós, na essencialidade de nossos gestos e palavras. Não há como negar, retirado todo o entulho que representam os ornamentos que trazemos para maquiar a visão do que somos e fazemos, sobrará somente o autêntico e o real. Quem tem coragem de contemplar isto com a vista nua?